André abre lentamente a porta velha, uma madeira desgastada e que range como um murmurio contrário ao silêncio que reina. É como se ela, a porta, tentasse prover a vida num ambiente frio e morto. Entramos em passadas calmas, o solado dos sapatos raspando o chão surrado. Gues está a nossa frente, parece ser ele o mais corajoso para enfrentar ao outro ser que se derrama no espaço ainda desconhecido.
Caminho alguns passos sempre olhando para o chão, pois tenho medo de encarar a verdade clara que se estende sobre os outros olhos. Sinto a claridade do ambiente me acomodar, me proporcionar a visão das nossas botas de montaria, o piso velho e limpo do quarto, a cama apertada em um dos cantos, uma mala em couro castanho ao pé e a sensação de um corpo que se estende mais a frente. Subo meus olhos, crio coragem para continuamente adentrar em outro mundo, acolher a verdade que todos os outros levam como uma marca da besta em seus corpos.
Meus olhos, eles se movem furtivos, medrosos de encontrar algo mesmo que procurando. Eles seguem tão sem fim, que o fim é uma jovem de vestido branco em algodão, pele negra e longos cabelos que cascateiam pelas costas. Seu corpo parado, firme a fitar o espaço de fora pela janela aberta, esperando talvez que o verde do mundo exterior apague suas promessas ou acalente sua alma. Não vejo seu rosto, não escuto sua voz. Ela, o pequeno ser que se parece tão ligado ao lado de fora, não nos nota ou não se importa em o fazer.
--Mullan?! -- a voz de Gues inicia, um sussurro frouxo em meio ao pequeno espaço do quarto. Seu corpo é duro, sua expressão é sempre tensa. -- Estou aqui por você, estou aqui para cumprir minha promessa.
-- Não se preocupem, não tentei ou tentarei fugir daqui. Me leve para onde quiser, Gues. Me deixe ser livre ao seu lado por instantes ou me feche aqui até o dia do juízo final. Eu não mais me importo. Estou cansada de lutar contra o inevitável, cansada de chorar para aqueles que não me escutam e por aqueles que não mais existem. Cansada de sonhar em voltar para casa. Exausta de existir. -- sua voz é suave, cadente e morna. É como luz fraca, é como mariposa que de tão perto da morte não mais admira a luz próxima. Seu corpo, esse pequeno espaço que pulsa sangue e vida se parece com o meu. Seus rosto jovem e marcado pela depressão se parece com o de meus irmãos. Seus olhos vazios refletem aos de Gues. Eles, todos eles se completam na escuridão que carregam em suas almas. São pontos cruciais para o grande finale.
-- Ainda sim eu cumpro a promessa feita, te levo para respirar comigo alguns dias de liberdade e de escolhas. Se não se importa agora, então que guarde lembranças para quando o fizer. Também sei que não fugiria. Mas para mim as respostas não estão na ausência de esperanças, mas na ausência de possibilidades. Você não pode fugir, Mullan, pois está cercada. Cercada e sozinha.
-- Pare com isso! -- minha voz sai cortante e alta, um rompante agoniado pelas palavras secas e maldosas do magro homem a nossa frente. Uma verdade que deveria ser silenciada para os ouvidos que sofrem -- Não cause mais dor na vida desta menina.
-- E o que sabe sobre dor, Helena? Até onde, dentro do mais profundo e nefasto de seu ser, você se forçou a ir pela dor?... -- Gues me questiona sem compaixão, seus olhos como se deliciando no meu desconforto e a loucura quase o tomando por completo.
-- Ela é uma pessoa!... -- tento.
-- Ela não é uma pessoa, princesa Helena. Ela é uma escrava, e escravos não têm direitos!
-- Por Deus, Gues... o que você é?! -- solto abismada pela coragem e pela crença em palavras tão nojentas, em realidades que se fizeram tão próximas. Não podemos mais compactuar com a escravidão que o nosso mundo lançou em outros corpos. -- Irmão, quem é esse que carrega ao lado, que compartilha os dias e a vida?! -- busco com meus olhos desesperados a compaixão no rosto de meu amado irmão, tento com força crer na bondade que ainda lhe resta -- André, o que tem feito para deixar sumir assim sua humanidade?
--Chega, Helena!... -- André finalmente fala. Sua voz grossa e cortante, sua amargura estampada -- Humanidade não significa ser bom. E o meu lado bom, o lado humano que você espera, morreu em tudo isso.
-- E quem é você? -- Mullan pergunta, sua voz se fazendo presente ao sair de seu espaço e me fitar intensamente.
-- Ela é minha irmã, e irá lhe fazer companhia durante sua estadia aqui.
-- Mais uma princesa, não?! -- a voz de Mullan sai grave, debochada -- Como esse mundo nobre consegue reunir tanta podridão?! Como uma só família consegue vender a vida dos outros ao diabo em nome do ouro que brota em suas roupas, suas casas, suas maneiras e seus títulos?!... -- seus questionamentos são retóricos, mas o ódio em sua voz é real e direcionável -- Você sabia, princesa, que estou sendo levada para ser uma escrava sexual em outro país? Que meu corpo será dado a um rico estrangeiro para que ele possa fazer o que bem queira?! Para que ele se lambuze, se esbalde e divida com quem deseja?! -- a voz de Mullan é dura, crua, e ainda mais congestionada pelo rancor e pelo sarcasmo. Seu asco e seu escárnio são figuras constantes ao mirar meus olhos, adentrar minha alma e captar a verdade que se esconde envergonhada. Sim, eu sei! Eu sei deste destino cruel, e mesmo assim não posso fazer nada para mudá-lo, pois a vida dos que amo valem mais do que qualquer outra.
-- Está na hora de ir! -- André diz resoluto, firmando em ação os propósitos devidos da viagem. -- Não há mais nada para se fazer aqui.
-- NÃO! -- a voz de Mirha grita em um só fôlego ao empurrar com força a porta. Seus braços finos que forçaram a entrada, sua respiração ofegante que toma o espaço diminuto de seu corpo magro e esfarrapado. Seus olhos loucos que vasculham todo o ambiente. -- Não!... -- ela grune novamente, um barulho animalesco e humano, uma mescla do horror que transforma uma pessoa no mais selvagem dos seres, no mais despedaçado do homens. Sua dor me corta.
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Desejo Viking
RomanceAlguém sabe quando o amor surge? Alguém sabe quando deixamos de temer perder a liberdade para ficar ao lado do outro? O amor seria mesmo essa faca de dois gumes, que de um lado te dá alegrias nunca antes vividas e do outro te toma alegrias nunca mai...