|Cap. 28|

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Meu coração ainda dispara mesmo após as tantas horas que se passaram desde o beijo que tomou meus sentidos. Me sinto louca, burra, angustiada, desejosa e enamorada. Odeio os sentimentos que me tomam, as sensações que corroem minha alma, destroem meus sonhos e parecem amargurar a ideia tão consagrada de solidão que tomei para mim. 

Meus pés caminham sem fim pelo grande quarto do senhor da casa, um quarto conhecido, apreciado e que já carrega ardorosas lembranças. Meus pés se acomodam no chão frio, seguem errantes pela pedra polida que acalma a febre que toma meu corpo apaixonado. É isso, deve ser isso. O desejo, a inveja e a necessidade de me agarrar a alguém finalmente me toma. E é assim que concluo minha loucura, atesto a besteira que cometo e sei da urgência que tenho em me afastar daquilo que transforma meus dias, toma minhas noites e acalora meu corpo. Sou uma mulher do mundo. Sou uma mulher que viveu demais e não se casou, que é dona do próprio corpo e que só conseguiu o direito de ser solteira e de se divertir  por carregar dinheiro e título que pesam na boca ousada de qualquer fofoqueiro de prontidão. Sou uma mulher de sorte, mas a sorte não parece mais estar ao meu lado.

-- Helena?! -- escuto a suave voz de Mirha que me chama do outro lado da porta, interrompendo assim meus passos angustiados que gastam o chão.

-- Sim, Mirha?! -- digo ao abrir suavemente a pesada porta e logo mais indicar para que entre.  -- O que deseja? -- já acrescento quando ela se senta na beirada da cama, seu corpo curvado, seu rosto limpo e cabelo penteado. O vestido é o mesmo, os cabelos longos e ressecados agora parecem ter se adestrado à escova. Seus olhos não me fitam, mas parecem ter perdido um pouco do brilho ensandecido de tantas noites. Seu comportamento é medroso, suas ações são comedidas para possivelmente não me assustar.

-- Preciso falar algo contigo... -- ela apenas diz  ao me fitar, seus olhos meio tristes e assustados em espera do meu consentimento.

-- Claro! O que gostaria de falar?

-- Hoje eu me sinto estranha, Helena. Hoje foi um dia tão cheio, tão infinito e ao mesmo tempo tao curto. Senti a loucura entrar e sair do meu corpo, a vontade de viver se esvair e logo retornar sedenta. Hoje foi um dia estranho, mas foi essa estranheza toda que parece ter me acordado para a vida. Tudo o que falo pode parecer meio surreal, mais uma loucura da cabeça de uma jovem já tão perturbada. Mas... eu passei por tanta coisa. Helena, eu passei pelo castigo de Deus e pela violência do homem. Eu não sabia mais como viver!

-- O que acontece, Mirha? Porque diz tudo isso? -- suas palavras me consomem, a angustia presa em sua garganta e o amargo da tristeza devastando seus olhos submissos e cansados me incomodam, me deixam aflita e sem saber como ajudar.

-- Por favor, me deixe continuar... Eu quero me desculpar com você, Helena. Por ter te assustado e te machucado. Eu também estava assustada o tempo todo, ainda estou. Mas ter todos vocês aqui, descobrir as possibilidades de acabar com todo o mal me fez acordar. Me fez querer existir para presenciar o fim de toda essa perversidade  provocada por alguns homens.

-- Não há porque se desculpar, Mirha! Como você bem diz, também estava assutada. O medo é capaz de fazer tanto, nos paralisar ou nos mover. Mas nem sempre a ação ou a falta dela representa algo positivo no mundo. O medo é isso, e ninguém deve se culpar por tê-lo.

-- Eu sabia que entenderia. Você é uma boa mulher, e será uma boa companheira para meu irmão. Eu fiquei com tanto ciume, com tanto medo de ficar sozinha que descontei em você, na sua bondade. Tentei tirar toda a parca felicidade que meu irmão estava conseguindo ter, fui tão egoísta que quis tomar tudo de Bjornan, mesmo quando ele já havia me entregado a própria alma. 

-- Não diga coisas assim, Mirha! Você tem mais essa oportunidade de ser feliz e ajudar teu irmão. Serão felizes juntos! 

-- Sim, todos nós seremos! Mas agora vou te deixar descansar. Obrigada por hoje, obrigada por tudo! -- a pequena Mirha se levanta, seus passos calmos e arrastados seguem para a porta. 

-- Mirha! -- chamo com a coragem e a necessidade de resposta que me queima.

-- Sim?!

-- Você... você sabe algo sobre aquele bilhete deixado no meu quarto? Eu sei que não é a melhor hora, mas...

-- Tudo bem, Helena! O fantasma que te atormenta faz parte do meu passado, um passado que não consigo falar hoje. Eu tinha medo por você, por nós. Não quero nunca que outra mulher passe pelo que passei. As profundezas daquela floresta, os demônios que vivem lá... Eu tive tanto medo... mas agora Andre está aqui, então podemos respirar aliviadas. 

-- O que meu irmão tem com tudo isso?

-- Ele é pior que os demônios da floresta, por isso agradeço a Deus por ele estar do nosso lado.

-- Mas...

-- Helena, estou cansada do dia de hoje. Vim aqui me desculpar e esclarecer algumas coisas, mas vejo que não tenho forças para mais nada. Lembranças me tomam a alma, me machucam muito. Me desculpe mais uma vez, mas há coisas que não posso falar por que rasgam meu espírito e porque divido com mais outros. Alguns segredos só são revelados quando juntamos todas as chaves.

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