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Dizes que brevemente serás a metade de minha alma. A metade? Brevemente? Não: já agora és, não a metade, mas toda. Dou-te a minha alma inteira, deixe-me apenas uma pequena parte para que eu possa existir por algum tempo e adorar-te — Graciliano Ramos

Ayleen

Fiquei pensando o que falar durante todo o caminho, mas agora não consigo encontrar as palavras certas. Elas parecem presas como um nó embolado em minha garganta.

Disseram que em algum momento, a vida ficaria mais calma e que seria mais fácil lidar com tudo. Durante os meus 21 anos, nada tem sido assim. Preciso de uma boa dose de coragem. Uma enorme.

— Eu cresci sem o meu pai — começo depois de uma respiração profunda.

Foco na piscina em frente a nós. É mais fácil assim.

— Eu realmente não sei muito sobre a sua família — Victor comenta, por alto.

Solto uma risada precária.

— Você vai se surpreender bastante— estico minha mão e pego uma almofada vermelha redonda. — Meu pai tinha uma paixão pela química. Mas o seu amor profundo era por minha mãe. Os dois bem jovens e inexperientes descobriram que seriam pais.

Victor solta um silvo alto.

— Consigo imaginar o desespero. Eu com esta idade não me vejo sendo pai.

— É muita responsabilidade colocar uma criança no mundo.

Aliso a almofada como se tivesse uma textura mágica.

— O meu pai precisou arranjar um emprego rápido. E conseguiu — queria que contar fosse mais fácil e eu pudesse deixar os meus sentimentos de fora.

Tiro os olhos da piscina e fixo-os nele por alguns instantes. Vejo uma expressão simpática e acolhedora. Por quanto tempo?

— E o que aconteceu? — me questiona.

— O lugar era arriscado e os trabalhadores não tinham muita segurança. O que é um absurdo já que se tratava de um trabalho de construções.

— Acho que sei onde quer chegar.

Não, você não faz ideia.

— Não tem um jeito legal de contar isso. É feio, é doído... — faço uma pausa — ...ele caiu do 14° andar... foi — o nó volta a se formar em minha garganta — ...fatal. Os equipamentos de segurança estavam todos danificados.

Trovoadas fazem um enorme estrondo e um raio corta o céu logo em seguida.

— Minha mãe sofreu. Foi silenciada pelo grande figurão da empresa responsável. Quem acreditaria em uma jovem mãe? Às vezes a gente precisa perder por escolha própria.

O som da chuva forte batendo contra o chão é o único ruído a ser ouvido. As gotas grossas e rápidas caem com selvageria sobre a água cristalina da piscina.

Eu acho que já chorei demais. Vou deixar a chuva lavar as lágrimas da minha alma.

— Eu... não fazia ideia de que tinha sido assim. Não vale nada, mas eu sinto muito — sua voz soa morna e tenra.

— O que mais dói, na verdade, o que realmente dói, é saber que isso poderia ter sido evitado. Aquele homem tinha uma família, tinha um nome; uma vida... ele era o meu pai — me esforço para não me entregar totalmente às emoções. — Porém, tudo foi anulado com um cheque miserável. Nem um pedido de desculpas. A consciência do monstro continuou tranquila.

DeclínioOnde histórias criam vida. Descubra agora