O Imprevisível Sempre Acontece - Parte 1

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O Imprevisível Sempre Acontece

O céu mal começava a clarear quando Donald saiu de fininho da casa da ex-esposa. Ao acordar, Cristina não estava mais ao seu lado, mas a bagunça que haviam feito sobre a mesinha ainda estava presente. Ele catou tudo com muita cautela, descartou a garrafa vazia e as guimbas de cigarro no lixo da cozinha, lavou os copos e pôs no suporte, juntou o baralho e guardou na gaveta da estante da sala. O som já estava desligado. Dobrou a coberta e deixou sobre o sofá. Então saiu feito um gato, fechando a porta com extrema delicadeza.

O vidro do carro estava embaçado pelo sereno que caiu na madrugada, e Donald precisou ligar o limpador por alguns segundos para conseguir ter visibilidade do caminho. O dia anterior havia sido uma loucura, e, mais racional agora, ele reconhecia que havia tido uma crise, na verdade, reconhecia que estava em uma, visto que ainda sentia uma pressão tremenda dentro de si, como se fosse surtar novamente a qualquer momento.

Desde que abriu os olhos, ele se entregou ao seu mantra interno para combater os pensamentos intrusivos. Era como se existisse um alerta em sua cabeça que ficava avisando: cuidado, eles ainda estão aqui. Então ele ficava repetindo mentalmente: uva, maçã, laranja, pera, morango... Obviamente este esforço ocasionou uma falta de atenção, por isso infringiu o sinal vermelho, freando bruscamente sobre a faixa de pedestre, deu uma seta errada para entrar em uma rua, não reparou numa lombada, mas conseguiu chegar à rua de casa. Estacionou a beira da faixada, tocou a maçaneta da porta e quando se preparava para sair, viu o veículo de Carlos saindo lentamente da residência.

Donald retesou e olhou para o relógio do rádio que marcava por volta das cinco e meia. Ao lado de fora o azul do céu começava a ficar mais claro, e o mantra de Donald foi rompido pelo questionamento: O que ele vai fazer a essa hora? Sabia que Carlos tinha o hábito de sempre sair no raiar do dia, que amava visitar alguns lugares, mas aquilo era estranho. Entretanto, por que só parecia estranho agora? Talvez fosse culpa do Dr. George que veio com aqueles assuntos esquisitos, colocando picuinhas em sua cabeça. Siga-o. Não. Donald balançou a cabeça, não iria seguir o seu irmão mais velho, não parecia certo. Siga-o. Não. Ele tocou a maçaneta, mas não conseguiu abrir a porta, como se uma força maior tivesse o controle do seu corpo. Siga-o.

- Inferno! - Donald se viu irritado. Ajeitou-se no banco vendo o carro do irmão virar em uma das esquinas daquela longa rua. Siga-o. Maçã, pera, uva, morango, melancia... Siga-o. Ameixa, la... lar... Siga-o. Revoltado consigo mesmo por ceder, Donald virou a chave com a veracidade impulsionada por uma raiva profunda. Pisou no acelerador como se estivesse pisando em seu pior inimigo; si mesmo. Cantou pneus pela rua afora.

O sol começou a raiar lindamente sobre a cidade, e Tompson, como sempre, era a primeira área a ficar movimentada com as trocas de turno das empresas. Parecia que seria um dia lindo, mas tinha um aspecto de anormalidade, um lindo dia anormal, um céu belo acima e eventos inesperados abaixo.

Estacionado em seu canteiro favorito na Serra dos Rosedos, para mais uma rotina comum do seu dia a dia, Carlos sequer imaginava que seria o principiante dos acasos. Inerte com as montanhas recém iluminadas pelo sol e afundado em sua calamidade interna, sequer notou que uma situação diferente o cercava, logo ele que parecia ter um sensor muito bom para captar as coisas ao redor, mas Carlos não era o único com habilidades naquela família, um Way que trabalha em campo ganha experiência na arte da tocaia. E o inusitado aconteceu no exato momento em que Carlos pegou a arma em seu colo e elevou-a sob o queixo, seu dedo congelou no gatilho, uma reação espontânea de seu corpo ao que soou o oco som de uma tapa violenta na janela do veículo.

Carlos olhou para o lado, vendo o irmão através do vidro com uma expressão surreal, seus olhos se arregalaram um pouco pela ocorrência abrupta, mas calmamente afastou a arma a repousando sobre o colo.

TLIAC (Frerard)Onde histórias criam vida. Descubra agora