24. O diário de um mago

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Há muito tempo reatei a comunicação com uma certa pessoa. Queria entender o que havia acontecido, mas ela se recusava a responder sobre algo que já era parte de um passado distante. Para mim significava muito obter uma resposta - e por isso insistia. Naturalmente, isso gerava tensões, que só se aplacavam quando falávamos de interesses pessoais e da vida no dia a dia.

Da minha parte, falava da Inglaterra. Ela em uma região remota ao Sul onde escolheu viver. Havia entre nós um profundo fosso em termos de bagagem e preferências, algo que só se superaria se as lembranças de um passado em comum tomassem a frente. Não foi o que aconteceu. As palavras se recrudesceram, levando a uma espécie de competição entre egos - algo hoje muito em voga nas redes sociais. Falei das minhas coisas, mas isso não interessa. Ela falava no contato com a natureza e com sua essência de bruxa.

Ela admirava Paulo Coelho, o que para mim era algo inconcebível. Me dava lições de moral baseadas em seus escritos, o que me desconcertava ainda mais.

Paulo Coelho já era um escritor famoso, apesar da crítica feroz. Não havia lido nada dele, mas por suas entrevistas nas quais dizia saber fazer ventar achava-o um medíocre. Contudo, seu passado tinha um lado que muito me instigava: na década de 1970, durante a parceria com Raul Seixas, fundou a Sociedade Alternativa, onde recitava mantras de magia negra inspirados em Crowley. Depois, aparentemente havia se regenerado. Tratou de esquecer os livros que escreveu, fez o Caminho de Santiago de Compostela, pregava o bem e a busca da lenda pessoal.

De início, Paulo Coelho não me era de qualquer interesse. Tinha mais o que fazer. Estava preocupado em me estabilizar profissional e financeiramente e a crise econômica pela qual passava o Brasil no final dos anos 1980 não dava muita margem para esses luxos. Contudo, seu magnetismo e sucesso com tanta gente em todo o mundo era algo que muito me instigava. Afinal, o que leva uma pessoa a fazer sucesso?

O adolescente deprimido e cheio de raiva, internado três vezes em clínicas de repouso para tratamento psicológico, saía às ruas para divulgar seus primeiros livros. O autor de músicas de sucesso nos anos 1970 dava declarações públicas que traziam uma certa idéia de poder adquirido após peregrinações e experiências na seara do ocultismo, como alguns ídolos do rock dos anos 1960 e 70. Um de seus livros fala de um pacto que teria feito - e depois de alguma forma desfeito - com o diabo. Essa poderia até ser uma explicação plausível pela fama e sucesso de um escritor considerado ruim, que até hoje só veste preto.

Escrito em 1982, "Manual Prático do Vampirismo" é o título do primeiro livro de Paulo Coelho. Três anos depois publicou outro livro que hoje renega, chamado "Os Arquivos do Inferno". Nos sebos do centro da cidade cópias de seus primeiros livros custam uma fortuna e aparecem em vitrines ao lado de obras também proscritas. Folheei esses livros todos. Os de Paulo Coelho parecem ser transcrições mal feitas de originais estrangeiros. Custam caro, pois são raros. A cópia que vi tinha as partes em branco das páginas misteriosamente cortadas, como se lá tivesse alguma coisa que não pudesse ser vista.

No início dos anos 1990, em entrevistas ao vivo pela televisão dizia ter o poder de fazer chover. Paulo Coelho é uma pessoa magnética, que rapidamente ficou rico e famoso escrevendo, um gênio da autopromoção. Seu personagem exibe lanças e flechas misturadas com água benta e peregrinações, refazendo o Caminho de Santiago ou as jornadas sufis. Sua linguagem evoca diversos arquétipos e símbolos, seus relatos reproduzem trechos de livros ocultistas. Sua vida é rica em experiências práticas, viagens e peregrinações. Paulo Coelho é um grande sucesso de público, com quase duzentos milhões de exemplares vendidos de 27 livros. É membro da Academia Brasileira de Letras, com ou sem crítica.

Resignado, mandei a meu antigo amor um livro do Profeta, no qual Paulo Coelho escreveu um prefácio.  As cartas traziam um desabafo, como o que eu queria fazer. Ela não se importou, dizendo que os outros livros do Mago eram melhores. Não levou muito tempo para dizer que não havia o que falar sobre o passado, pois não era médium de si mesma. Aí estava a resposta a tudo. Cortei imediatamente a relação com essa agora "pessoa" e, depois de uns vinte anos, consegui esquecê-la.

Detalhes dessa história são hoje irrelevantes, exceto o fato de que ela contribuiu para uma forte depressão aliada a uma investigação sobre como uma pessoa como Paulo Coelho conseguia ser tão admirada.

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