Capítulo 70

6.4K 374 73
                                    

Eu estava com frio. Meus dedos dormentes tentando com veemência se manterem dentro da manga de meu moletom enquanto eu inspecionava a rua com os olhos a todo momento. Estava escuro, quase chegando ao amanhecer, presumindo a partir do momento que os postes foram apagados.

Ele disse que ia embora, mas eu continuava aqui. Nariz escorrendo e olhos ardendo com o esforço de permanecerem atentos. Ou talvez eles estivessem assim pelas lágrimas.

Eu chorará por horas. Tanto, que a um certo ponto, já nem sentia mais as lágrimas rolarem. Elas simplesmente se fundiam ao meu rosto úmido, molhando meu pescoço e roupas. Eu só percebi que ainda chorava quando minha cabeça começou a doer– ou melhor, estourar– e meus olhos começarem a ficar secos, incapazes de produzir qualquer líquido.

As palavras ainda rolavam soltas em minha mente. As palavras eram duras. Quentes. Claras.

"Não me chame assim", ele disse, a voz fria como nunca antes.

Ele nem me deixou explicar. Ou melhor, eu não consegui explicar. Eu não havia retribuído o beijo. Eu não queria beijar Sean; ou pelo menos não agora. Não quando eu finalmente achei alguém que me ama e que luta por mim, não foge de mim como ele sempre fez...

Eu devia ter explicado. Deveria ter dito que não era o que eu queria. Que não era Sean quem fazia meu coração palpitar, nem a primeira pessoa que eu pensava ao acordar. Era ele.

Mas agora ele tinha escapado também.

Por favor, volte. Eu repetia isso diversas vezes em minha cabeça. Talvez por segurança. Para me manter pensando em outra coisa se não tudo que se passou nessa maldita noite.

Eu já não me importava com o que aconteceu no jantar. Eu não dava a mínima se eu feri alguém e se deixaria de ver essas pessoas por causa disso. E ao que parece, eles também não davam a mínima.. com excessão de Nona, Beatriz, Violet e tia Clear. As duas primeiras contaram o que elas mesmas disseram depois do meu "show"; a outra permaneceu ao meu lado até que seu pai a mandasse entrar dentro do carro, já que eles viajariam ainda naquela madrugada para sua casa. Tia Clear me ofereceu dinheiro para passagem ou algo que eu desejasse, e eu estava tão atordoado que aceitei sem nem mesmo questionar.

Todas elas devem ter percebido o que aconteceu, ou pelo menos deduzido, já que me deixaram "sozinho com meus pensamentos", como Nona colocou, logo após uma série de ameaças diferidas ao meu namorado.

Namorado.

Parecia uma palavra estranha agora. Deixava um gosto amargo na boca, mesmo não sendo dita. Como se não fosse mais certo. E talvez não fosse, dado que ele realmente estava cumprindo com o que disse.

Ele ainda não tinha voltado, e pelo que eu conhecia dele, não voltaria mesmo. Eu estava aqui por pura teimosia e a esperança crua de que eu conseguiria esclarecer tudo. Que conseguiria limpar minha barra e que nós voltaríamos a ser o casal perfeito.

Mas isso não era algo que podia ser limpo, nem mesmo por mim, aparentemente.

Eu direcionei meu olhar para minha esquerda pela primeira vez na noite, onde antes o Uber estava estacionado, e que agora se encontrava vazio. Olhei mais uma vez para direita, uma parte minha ainda crente de que ele voltaria.

Mas ele não estava lá.

Eu engoli em seco. Lágrimas inexistentes ameaçando vir á tona outra vez. Minhas mãos já não estavam dormentes. Não quando eu cravei as unhas na carne da minha palma, forte suficiente para sentir o sangue quente entrando em minhas unhas.

Ele não voltaria, e eu deveria aceitar isso. Respeitar isso. Eu conseguiria.

Eu conseguiria, eu repeti para mim mesmo enquanto chamava outro Uber. Eu faria isso. Eu o deixaria. Eu tinha que deixar.

O barulho das rodas no asfalto chamou minha atenção, tirando-me de meus pensamentos. O carro tinha chegado mais rápido do que eu esperava, então tive que juntar minhas coisas com mais rapidez do que achei que precisaria. O motorista me lançou um olhar cansado e impaciente enquanto eu juntava minhas malas, nem mesmo se importando em oferecer algum tipo de ajuda. Eu ignorei, já estava cheio demais de pensamentos para martelar sobre mais um.

A ida de carro até o aeroporto não foi tranquila. O carro chacoalhava e chicoteava a cada minuto, provavelmente por causa do motorista raivoso à frente. A parte boa é que não demorou muito até chegarmos, eu logo paguei o que devia e desci do carro com um movimento rápido.

O local estava quase deserto, o que não era para menos, já que era Natal e todos estavam com suas famílias. As poucas pessoas que estavam no lugar estavam tão feliz quanto eu.

Desviei de algumas delas enquanto caminhava para o meu saguão, encarando minha passagem para ter certeza de que estava seguindo pelo caminho certo. Por fim, encontrei um corredor praticamente vazio comandado por uma funcionária usando uniforme azul, que pegou a passagem que estava em mãos com indiferença, para logo depois oferecer informações vagas sobre onde eu deveria seguir.

Em poucos minutos, eu estava me acomodando na poltrona, forçando minha mente a apagar. Eu estava cansando. Realmente cansado. Mas eu não conseguia dormir, apagar. Meu cérebro estava totalmente ligado e um turbilhão, então eu tentei outra coisa. Pensar em preto.

Eu tentei visualizar o preto, cobrindo lembranças e pensamentos no véu negro imaginário.

A voz eletrônica e feminina transmitida pelo microfone me acordou

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.

A voz eletrônica e feminina transmitida pelo microfone me acordou. Eu nem se quer tinha notado o quanto eu tinha dormido. Mais de 5 horas, pelo que parece.

Ainda bem que o voo não tinha conexões.

Eu apanhei minha pequena mochila na poltrona ao lado, pondo-me de pé em um movimento rápido. Eu não sei dizer com muita precisão o que aconteceu depois disso. Táxi, cidade, apartamento.

Deixei as malas no batente da porta, tirando os sapatos logo em seguida e caminhando apenas com as meias no chão de madeira.

Estava escuro, empoeirado e vazio. Minha vida estava uma bagunça, mas eu poderia limpar um pouco. Era a única coisa que eu fazia bem.

Colega de quarto (para revisão)Onde histórias criam vida. Descubra agora