Capítulo 59

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Perguntas pairavam no ar depois daquele jantar. Não falamos sobre o que Gen mencionou na mesa. Nem sequer uma vez.

Eu sentia que ele tinha algo a dizer. Estava arredio e de olhar concentrado a dias. Eu não ousei perguntar a ele, eu tinha desenvolvido minhas maneiras de parecer indiferente. Terríveis, por sinal.

Eu tinha um turno no trabalho hoje, por isso, mal tive tempo para se quer falar com ele. Acordei e fui direto para o chuveiro, me trocando rapidamente enquanto rezava para ter tempo o suficiente para fazer tudo que eu planejava.

As aulas naquele dia foram tão puxadas, que mal tive tempo para um almoço descente antes de voltar para dentro de outra sala. A aula de projetos, em especial, pareceu ter engolido qualquer tipo de disposição que ainda me restavam. Agradeci a Deus pela primeira vez quando a hora de ir para o trabalho começou.

Em geral, não foi diferente da última semana. O movimento estava parado, e minhas únicas companhias eram a pouca iluminação da loja e a neve pálida que caia atrás do vidro embaçado. Acabei agradecendo mentalmente outra vez quando meu turno acabou.

Eu estava esgotado quando finalmente percorri o caminho de volta para casa. O vento forte o suficiente para me fazer espirrar começara a me incomodar, mas não por muito tempo, antes que eu chegasse em casa.

Ele estava de costas para mim quando abri a porta. A luz do microondas indicou que ele estava esquentando comida, e não protestei quando vi essa cena. 

Eu peguei pratos e talheres para por sobre o balcão. Jason apareceu com a comida em mãos pouco depois, me olhando.

-Oi, Tucker- tentei.

Ele me deu um selinho rápido antes de se sentar.

Jason revirava a marmita com uma carranca apoiada sobre uma das mãos em punhos, o barulho da comida sendo mastigada e engolida eram os únicos sons na casa. Até mesmo o vento do inverno parecia ter diminuído.

-Olha... não precisa ir para minha casa. Na verdade, seria melhor mesmo se você não fosse e..

Ele me calou ao franzir o cenho; as sobrancelhas tão arqueadas que, por um momento, achei que poderiam se fundir ao cabelo espetado.

-Sei, vai ser melhor se eu não for então- voltou a engolir um punhado de comida, como se para diminuir o impacto das palavras duras. 

Não funcionou.

-Você sempre escuta o que quer, não é?- foi minha vez de disparar palavras duras.

Olhar frio, indiferença. 

Eu queria lhe arrancar a cabeça.

-Você sabe quem são meus pais.. como eles reagiriam. Estou tentando te proteger deles.

-Talvez esteja na hora de enfrentá-los.

-Você nãos os conhece...

-Nem eles a você. Eles não sabem nada sobre você.

Eu levantei da mesa, levando comigo meu prato sujo e os talheres. Fazendo questão de que fizesse bastante barulho.

Jason me acompanhou.

-Você não pode se esconder deles para sempre.

Balancei a cabeça, como se para afastar memórias. Lapsos do meu passado.

Era como se eu pudesse sentir o vento da janela batendo contra mim. A porta de meu quarto trancada. Quase senti a sensação de definhar em vida outra vez.

O prato se estilhaçou em um milhão de pedaços no chão. Minhas mãos tremiam.

Eu buscava por ar nos meus pulmões, mas era como se eles tivessem se esquecido de como filtrar o ar. 

Jason estava parado a uma distância considerável de mim, as mãos paralisadas. Ele se aproximou, de vagar. Como se para evitar que eu quebrasse como o prato em minha frente. Eu só o senti quando ele me envolveu com os braços, e eu chorei. Chorei ao sentir o cheiro de seu perfume enquanto o calor de seu corpo me embalava.

O primeiro contato intenso que tinhámos a dias. Eu chorei, e me odiei por isso.

Chorei como se minha vida ainda fosse aquela, como se os fantasmas fossem reais.

-Eu não consigo- conclui, baixinho.

-Você consegue. Não vai deixá-los ganhar- assegurou.

Pisquei, várias e várias vezes.

-Porque se importa tanto... você não tem obrigação nenhuma de continuar a suportar isso. Você..- balbuciei, me desvencilhando de seu toque.

Ele me puxou de volta, guiando meu olhar para encontrar o seu.

-Não vê? Eu te amo. Te amo e não tem o por quê fingir o contrário.

Se eu não respirava bem a momentos atrás, agora, nenhuma molécula de Nitrogênio deixava meu corpo. Meus olhos estavam vítreos no seu, minha boca, separada.

As palavras demoraram um pouco até fazerem efeito. Ele disse que me ama.

-Eu te amo- disse de volta, mas não tinha certeza se ele escutara, já que minha voz não passava de um sussurro. Então eu repeti, de novo e de novo.

-Eu te amo.

E ali estava, meus olhos nos deles. Compartilhando a respiração. Aquilo era muito mais intímo que sexo ou um simples beijo, nunca consiguirei descrever a sensação de olhá-lo naquele momento. 

-Vamos enfrentar isso. Juntos.- ele me assegurou, e eu apenas assenti, incapaz de fazer qualquer outra coisa. -Vamos.

Então, deixamos a casa. O peso nos ombros que me acompanhava a anos me deixou por aquele momento. Eu o segui, corri com ele pela neve suja da cidade. Posei para as fotos estúpidas que ele tirava enquanto eu sorria, dancei na praça iluminada.

Eu guardei cada detalhe dele. Quando a luz amarelada iluminava seu rosto corado. O bigode de chocolate quente, as tatuagens que pareciam se fundir ao céu noturno. Lindo.

Paramos apenas quando estávamos ofegantes, já longe da cidade. Eu subia pelo bosque envolto a neve com ele, a respiração se condensando. O cheiro do pinheiro me invadiu enquanto subiamos mais e mais, Jason me puxava com um impulso antes de continuar me guiando a frente. 

O bosque não me amedrontava, não com ele ali. Eu conseguia ouvir os passaros se arrulhando e os coelhos saltitando de volta as suas tocas.

Paramos no limite de um penhasco, quando as árvores acabaram e tudo que restava a frente era um tapete branco de neve que brilhava como glitter sobre a luz da lua.

Jason se sentou, parecendo não notar que sua bunda fundou alguns bons centímetros na neve. Apesar disso, me pus ao seu lado, deitando preguiçosamente minha cabeça em seu ombro.

A vista era algo limitado da cidade, não era como a do meu aniversário, mas era bonita o suficiente. E o mais longe que nossas pernas cansadas podiam percorrer também.

-Amo ver a cidade daqui. Tudo tão sereno. As luzes se fundem as estrelas.

Acompanhei seu olhar. A cidade realmente se fundia ao cenário no céu. Tudo que se via eram as milhares luzinhas coloridas e os carros, tão pequenos e ligeiros quanto ratos. Ele olhava tão silenciosamente, que por um momento, queria guardar aquilo para sempre.

Engarrafar a memória como água ou perfume.


Colega de quarto (para revisão)Onde histórias criam vida. Descubra agora