CAPÍTULO 3

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Memórias On


Não entendia direito o que acontecia. Lembrava de um desentendimento do meu pai com um homem desconhecido, que aparecia em casa com muita frequência.

Naquele dia ajudava a mamãe na cozinha, eu gostava de ser sua ajudante em quase tudo que fazia.

A campainha tocou e o papai estava na sala, consertando o meu piano desafinado.

Ouvimos vozes alteradas e rapidamente mamãe pegou nas minhas mãos de forma protetora.

Quando homem desconhecido entrou pela cozinha, acompanhado por outros dois homens de estatura robusta e ameaçadora.

O meu pai surge logo depois, pedindo à mãe para sair comigo, pois conversaria com aqueles homens.

Pareceu hesitar pelas palavras do papai, parecendo que não concordava em deixá-lo sozinho.

— Oh meu amor por favor, vai à casa da Mary , levar a nossa filha...

— Não David, não posso o deixar sozinho com estes homens. — apertou as mãos nos seus braços.

— Querida desculpe-me, não devia deixá-las passar por isso. — suspirou e beijou o topo da sua cabeça. — Deveria protegê-las com a minha vida.

— Papai por que mamãe chora?... Quem são estes homens.

Agachou-se na altura da pequena menina, e acariciou os seus cabelos rebeldes, sobre um coque mal feito.

Memorizou as suas feições e depositou um beijo na sua testa. Passou a beijar as suas bochechas, fazendo-a sorrir bastante.

— Para papai, o senhor vai fazer a minha barriguinha doer...

— Princesa, você é a coisa mais fofa, e verdadeira, papai vai carregar você sempre aqui, não importa, o tempo e muito menos as estações. — apontou no seu peito sobre a camisa.

— Eu amo-te papai, o senhor é o melhor. Falei para Micaela que o senhor é um superpai, mas ela duvidava...

— Sempre vou protegê-la  meu amor. Agora promete-me que vai cuidar da sua mãe, enquanto falo particularmente com os meus amigos?...

— Sim papai, eu prometo, juradinho ao senhor...

— Obrigada, a minha princesa, agora vai com a sua mãe até a casa da tia Mary. — Observou a sua mamãe, que virou o rosto rapidamente. Limpando as palmas das suas mãos as lágrimas.

Enquanto caminhamos até a casa da tia Mary, mamãe tremia e suas mãos estavam geladas.

Tocamos a campainha e a Tia Mary, que é nossa vizinha, fez a nossa recepção de forma calorosa.

Estava na sala assistindo um desenho animado, enquanto mamãe conversava com a tia na cozinha.

Subitamente  alguém senta-se ao meu lado, viro-me e vejo mamãe, envolve-me no seu braço cheirando os meus cabelos.

Diz que me ama muito mais do que a sua própria vida. Fala que vai voltar a casa, para encontrar papai, pois precisa da sua ajuda.

Peço que não vá e deixe-me  sozinha. Mas diz para me comportar, pois tia Mary irá tomar conta de mim, enquanto não volta.

Os meus pais foram assassinados naquele mesmo dia. Por mandato de um homem que o meu pai devia trinta mil dólares. Por sorte não fui levada como parte da dívida, tia Mary conseguiu esconder-me.

                                                                                                                                                              Presente

Chegando a casa, com as compras na mão e a chave do apartamento, que vivo com os meus tios desde a morte dos meus pais.

Quando fazia o meu sétimo aniversário, fui acolhida pelo irmão mais novo da minha mãe o tio Frederick Couts que já era casado com a sua bela esposa Amanda Lins na época.

A primeira vez que entendi o racismo foi quando ao abrir o portão de acesso ao prédio que eu morava com os meus tios. Uma mulher branca parou-me e tratou-me como uma prestadora de serviço dela, serviço esse maioritariamente ocupado por mulheres negras.

— Eu respondi-lhe: eu não sou funcionária, sou moradora do bloco.

Ela não soube o que responder, virou as costas para mim e eu já subi as escadas com lágrimas nos olhos e chorei por horas.

Chorar doeu muito nesse dia, nunca achei que passaria por isso, mas, sim, eu passei.

O meu primo e eu sempre estudamos em escolas públicas. Os meus tios ganhavam salário mínimo, o que não dá para custear escola particular para duas crianças, apesar de ser o sonho deles.

Com o seu filho três anos mais velho que o Liam Couts, os meus tios que priorizam sempre a nossa segurança e educação.

Entender os privilégios por ser negra da pele clara ainda me dava algum conforto pela possibilidade que isso representava para mim, mas cedo ou tarde isso perdia em mais um episódio de racismo velado, mais um episódio de preterimento, mais um episódio de silenciamento, mais um episódio de solidão. Ser quem é às vezes custa-me noites em claro.

Cresci não gostando do meu corpo, pois entendia que garotas inteligentes eram magras e tinham traços finos como parisienses dos filmes do Godardo, passei a acreditar que eu não combinava com o meu corpo.

Eu sempre sou elogiada pelas minhas curvas, mas nunca pelo conhecimento que eu tenho a passar!

Uma vez uma visita na minha casa perguntou se eu já tinha lido mesmo os livros na minha estante.

Um dia na escola eu citei Becker, a professora perguntou de onde eu sabia quem ele era.

Tive o privilégio de tratar em terapia muitas feridas que o racismo e a sua estrutura causaram-me o tempo todo por possuir esse ou aquele traço da minha raiz negra.













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