Todas as vacas empinam seus pés; tudo o que voa e pousa, eles vivem quando você se levanta para eles. As barcaças navegam rio acima e rio abaixo também, pois todos os caminhos estão abertos na sua subida.
~ Fragmento de "Hino a Aten"
A escuridão da noite lentamente engolia o Egito conforme o sol ia se pondo no horizonte, contornado por paredões de pedra e dunas, indo cada vez mais para o interior do Saara. No palácio real em Amarna, com olheiras e os olhos inchados, Nefertiti tentava lutar contra o luto de perder grande parte de suas filhas.
Era como se a rainha já não tivesse lágrimas para derramar, de tantas que já foram usadas. Sentada em seu quarto, ela fitou o belo busto feito de calcário reproduzindo a si mesma, um presente de seu amado faraó, que estava na sacada daquele mesmo quarto como a própria imagem da depressão. Com tantas mortes na família no mesmo ano, Akhenaton estava mal.
Apesar da dor do luto corroendo o próprio peito, a rainha ergueu-se e foi até Akhenaton. Os presentes dados pelas civilizações vizinhas, consequências de casamentos, nascimento de Tutankhaten e bajulações, eram ignorados pelo faraó. Nada brilhava em seus olhos se não fosse o vinho com o quão ele se embebedava naquele dia. E mesmo neste, o brilho era opaco e sem alegria. Akhenaton preferia bem mais ter as filhas, a mãe e a irmã ali com ele, mas tudo que ele tinha era a solidão do pôr do sol.
- Meu amor... - disse Nefertiti abraçando o faraó por trás - Compartilho do luto que assola seu coração, mas não acha que já bebeu demais por hoje?
- Não. - respondeu o faraó, fazendo Nefertiti suspirar longamente.
- Tudo bem, tudo bem... - disse Nefertiti tentando puxar de dentro de si alguma migalha de paciência - Venha ficar comigo na cama então. Podemos pedir algumas frutas bem doces... ou pode tomar um banho para relaxar.
- Não. - respondeu novamente o faraó tomando o último gole da ânfora de vinho em suas mãos, a quão tinha bebido sozinho - Quero ficar sozinho... aproveitar a brisa.
- Tudo bem... - disse Nefertiti depois de alguns segundos de silêncio - Mas sabe que estou aqui por você caso precise, certo?
Akhenaton afirmou com a cabeça e, apesar do coração de Nefertiti doer e sentir desesperadamente que também precisava de apoio, ela aceitou aquela resposta do faraó e foi embora, deixando-o sozinho na sacada, tal como ele queria.
Para o faraó, Nefertiti, Tutankhaten, sua esposa estrangeira e algumas das filhas ainda estavam vivas, mas isso não tornava a dor inexistente, e nem fazia com que Akhenaton conseguisse ouvir os apelos sussurrantes de Aten por vingança.
- Sabe que isso foi a maldição dos deuses. - lembrou Aten - Temos que dar o troco. Nos vingarmos por sua família.
- Vingança não vai trazer elas de volta... - resmungou Akhenaton, com a voz lenta e embargada, segundos antes de tacar a ânfora de vinho no jardim logo abaixo, fazendo com que ela se quebrasse em vários pedaços - Você nem soube responder o que vai acontecer com as almas delas!
- Então é isso... - disse Aten - Ao invés de mostrar quem manda, vai ficar se embebedando dia sim, dia não?
- Não sei se notou, mas seis, SEIS parentes próximos morreram! Minhas filhas! Minha irmã! Minha mãe! Uma depois da outra! - reclamou Akhenaton - Será que posso tirar uns dias para ficar de luto?!
Aten nada falou, apenas suspirou diante a cena do faraó completamente derrotado daquele jeito. No horizonte, o sol, o símbolo de Aten, ou até ele próprio, finalmente terminou de se pôr. O último brilho de sua luz deixou o Egito de forma tão serena e tranquila, que não combinava com os sentimentos do faraó.
VOCÊ ESTÁ LENDO
A Morte Das Areias do Saara
Historical FictionAntes de as pirâmides serem construídas, as areias do Saara, as águas do Nilo e suas margens pertenciam aos deuses. E, dentre esses deuses egípcios que reinavam, protegiam e castigavam os humanos, existia um deus conhecido por sua ligação com a mort...