Capítulo 49

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Depois do soco, não nos falamos mais. Eu voltei para o quarto onde havia passado a noite e tirei o magnífico vestido vermelho que Morrigan - ou apesar de eu achar muito improvável ele, - me emprestou, o deixando esticado sobre a penteadeira.

Caminhei até a pequena escrivaninha ao lado da cabeceira para pegar o casaco de lã preta que Feyre me cedeu para não caminhar por aí nua, e despretensiosamente, sem nem perceber, caminhei para frente do espelho.

Vi o meu reflexo e não senti diferença em meu rosto, só a perda de peso, mas nada tão drástico quanto eu pensei que seria. Meus olhos desceram até a região dos ferimentos, e imediatamente, como se tivesse queimado os dedos em uma pedra de gelo maciço e selvagem, virei as costas pro meu reflexo. Não estou interessada em me lembrar dos tentáculos em carne viva que habitam meu abdômen, quase como se possuíssem vida própria, muito menos vê-los.

Como mecanismo de defesa, vesti o casaco do espião, ainda sentindo frações pequenas de um aroma secundário vindo do tecido. Um perfume masculino certamente, com aroma de floresta após a chuva, madeira e folhas molhadas, dentro de uma aura aconchegante. Um tipo de aroma que não pode ser encontrado em Vênetos.
Trouxe o tecido pra mais perto do meu nariz, com vontade de sentir o aroma agradável por mais alguns segundos enquanto caminhava em direção à cama. Torcendo para que roubasse minha atenção das minhas aflições e preocupações.

O perfume dele perdeu a intensidade que tinha antes, ainda está aqui, mas o meu cheiro apimentado e doce está disputando dominância.
É curioso sentir os dois aromas juntos. Floresta após a chuva junto de mel em brasa, não parece uma combinação boa a princípio, mas quando se sente os dois misturados, disputando a liderança, chega a ser intrigante e engraçado o quanto exalam um perfume delicioso.

É claro, não poderiam resultar em algo diferente já que o meu cheiro está se sobressaindo. Mas ainda assim, o seu perfume não estraga tudo. É como se a floresta molhada estivesse coberta por mel quente, exalando aroma doce e amadeirado ao mesmo tempo. Chega a ser relaxante.

Ainda com o casaco sob meu nariz, recostei a cabeça no travesseiro, imaginando as matas do norte de Prythian cobertas por mel após aquela tempestade horrenda. Abelhas espalhadas e voando, os pingos de chuva sendo vencidos pela abundância de mel, formigas tirando uma casquinha, a madeira melada, a atmosfera quente mesmo em meio ao frio. Mas gradativamente, a imagem escureceu, as folhas verde-escuras assumiram um tom ainda mais denso, foi tornando-se turva, então opaca, e por fim se tornou apenas escuridão.

***

A mão enrugada de unhas pontudas e afiadas agarrou meu coração que batia em disparada, e sem pena, o apertou com toda a intensidade dessa vez só, o espremendo com violência e crueldade. Dor irradiou não apenas em meu peito, mas por todo o meu corpo, sentindo a extremidade pontiaguda de suas unhas perfurarem o órgão, me impedindo de puxar o fôlego. Me impedindo de me agarrar à vida.

Purpurina lilás impregna o ar, enquanto os olhos nublados de Erone me encaram abertos e estáticos, sem brilho, sem vida.

A mão se afastou do meu coração, mas ele passou a latejar ainda mais dolorosamente, arder ácido, torturado pelo o que havia visto, a imagem horrenda o atormentando, assombrado pelo sentimento de luto. De repente uma boca carnuda e avermelhada surgiu nesse coração ferido, se abriu vorazmente e gritou tão alto, que o órgão se rachou em mil ramificações como se fosse de vidro.

A dor foi incontrolável, infernal. Por fim o berro estridente e torturado estourou o coração em infinitos pedacinhos. Então me encontrei me debatendo dentro da escuridão, descontrolada em movimentos frenéticos para abafar a dor, mesmo sabendo que não funcionaria, completamente cega pelo sofrimento, limitada por mãos firmes e vacilantes. Como um animal selvagem descontrolado, mas contido.

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