Capítulo 1 - Apresentação

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Soraya:

Tenho uma teoria: odiar e amar alguém são coisas perturbadoramente parecidas. Passei muito tempo comparando o amor ao ódio e apresento abaixo minhas observações.

Amor e ódio são viscerais. Só de pensar naquela pessoa, seu estômago já revira. No peito, o coração bate pesado e forte, quase visível debaixo da pele e da roupa. Seu apetite e sono ficam seriamente comprometidos. 

Qualquer interação faz o sangue ferver com um tipo perigoso de adrenalina e você se vê quase em uma reação que beira o limite entre lutar e fugir. Seu corpo parece prestes a perder o controle. Você é consumida, e isso a assusta.

Amor e ódio são versões espelhadas do mesmo jogo – e você tem que vencer. 

Quem me dera estar na solitária, mas infelizmente tenho uma colega de cela. Cada tique-taque de seu relógio parece mais uma daquelas marquinhas na parede da cela que servem para contar os dias.

Estamos envolvidas em um dos nossos joguinhos infantis, os quais não requerem palavras. Como tudo o que fazemos, é um jogo terrivelmente imaturo.

A primeira coisa a saber a meu respeito: meu nome é Soraya Thronicke. Sou assistente executiva de Leila Barros, co-CEO da Leitura e Saraiva.

Em um passado não muito distante, nossa pequena editora, a Saraiva, estava à beira do colapso. A realidade da economia deixava claro que as pessoas não tinham dinheiro sequer para pagar o financiamento de suas casas e, em meio a esse cenário, os livros tornaram-se um luxo. 

Livrarias fechavam por toda a cidade como velas se apagando. Nos preparamos para o praticamente inevitável fechamento.

Na última hora, um acordo foi fechado com outra editora que também enfrentava dificuldades.

 A Saraiva se viu compelida a entrar em um casamento forçado com o decadente império do mal, também conhecido como J'B Leitura , administrado pelo próprio – e insuportável – senhor Bolsonaro.

Com as duas empresas crentes de que estavam salvando uma à outra, elas arrumaram as malas e, depois do tal casamento, se mudaram para uma casa nova. 

Nenhuma das partes estava, nem de longe, feliz com o rumo dos acontecimentos.

Os Saraivanos lembravam-se de sua mesa de pebolim e das partidas na hora do almoço com uma nostalgia tingida de sépia. Eles não conseguiam acreditar que os J'Bs, os idealistas, tivessem sequer sobrevivido até hoje com sua baixa adesão aos principais indicadores de desempenho e insistência pueril de que literatura é arte. Os J'Bs acreditavam que números eram mais importantes do que palavras. 

Livros eram unidades. Venda essas unidades. Dê os parabéns à equipe. Repita o processo.

Os Saraivanos observaram horrorizados enquanto seus tempestuosos meios- irmãos praticamente arrancavam as páginas de Machado de Assis e Cora Coralina. 

Onde Bolsonaro tinha arrumado tantos almofadinhas, com aquele perfil muito mais voltado para Contabilidade ou Direito? 

Os Saraivanos ressentiam essa ideia de livros como unidades. Livros eram, e sempre seriam, uma entidade mágica, algo que deveria ser respeitado.

Um ano depois, só de olhar era possível saber, com base na aparência física, de qual das empresas um funcionário tinha vindo.

 Os J'Bs eram praticamente geométricos; os Saraivanos, escribas delicados. Os J'Bs eram tubarões em seus cardumes, sempre debatendo e tomando as salas de reunião para suas ameaçadoras "sessões de planejamento" – ou "sessões de tramar maldades", eu diria. Os Saraivanos amontoavam-se em seus cubículos como pombos sobre a torre do relógio, lendo manuscritos e, trabalhando em busca da próxima sensação literária. O ar à nossa volta era perfumado com chá de jasmim e cheiro de papel. Nosso garoto pin-up é Shakespeare.

A mudança para um novo prédio foi um tanto traumatizante, em especial para os Saraivanos.

Pegue um mapa dessa cidade. Trace uma linha reta passando exatamente na metade da distância entre os prédios onde ficavam as duas empresas, marque um sinal vermelho no ponto central entre elas e aqui estamos.

 A nova Leitura & Saraiva é um sapo de cimento cinza e barato em uma rua importante, incapaz de apreciar um clima ameno. Aqui o tempo é polar de manhã e infernal à tarde. Mas o prédio tem uma característica que o redime: estacionamento no subsolo – em geral tomado por aqueles que chegam cedo, ou, devo dizer, pelos J'Bs.

Leila Barros e o senhor Bolsonaro visitaram a construção antes da mudança e uma coisa rara aconteceu: os dois concordaram em alguma coisa.

 O andar superior do prédio era um insulto. Só havia um escritório executivo. Então uma reforma total foi necessária.

Depois de uma longa sessão de brainstorming pontuada por tantos insultos a ponto de fazer os olhos da designer de interior lacrimejarem, a única palavra com a qual Leila e o senhor Bolsonaro concordaram em usar para descrever a nova estética foi "reluzente". Essa também foi a última vez em que os dois concordaram. A última. 

A reforma sem dúvida atendeu ao pedido. O décimo andar agora era um cubo de vidro, aço e piso preto. Você poderia fazer a sobrancelha usando qualquer superfície como espelho – paredes, piso, teto. Até as nossas mesas eram feitas com grandes placas de vidro.







Olá Moranguinhos, espero que tenham ficado curiosos com esse comecinho da história, deixem a estrela e um comentário para eu saber sua opinião.

Obrigada por lerem!

Jogo do amor - ÓdioOnde histórias criam vida. Descubra agora