Não é desculpas, é medo!

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Ainda lembro do sabor de sua boca. Inspirei suas expirações quentes até meus pulmões se verem cheios dela. Seu ar estava dentro do meu corpo. Em dois minutos, ela me ensinou coisas que toda a minha vida não tinha me ensinado. Esquecer sua existência vai ser um desafio, mas a nova vaga não é nada além de desafios.

Saio fecho delicadamente a porta do escritório de Leila e me recomponho.

Viro-me e ali está ela, tranquila em sua cadeira.

– Oi.

Sou recebida com uma versão diferente de "Como Você Está?".

– Olá – respondo duramente antes de andar até minha mesa.

O que ela diz em seguida me deixa abalada:

– Eu sinto muito. Muito, muito mesmo, Sory.

Acredito nela. A memória do seu semblante dolorido enquanto se afastava de mim no bar praticamente me impossibilitou de dormir por duas noites seguidas. Agora é a hora. Poderia esbravejar com ela e ela esbravejaria em resposta. Mas esse não é o tipo de pessoa que eu quero ser.

– Sei que sente.

Nós duas sorrimos e olhamos uma para a boca da outra, o fantasma do beijo ainda pairando entre nós.

Hoje Simone não está perfeita como costuma estar. Parece menos arrumada, provavelmente por não ter dormido bem durante as últimas noites.

Sua camisa branca é da cor mais horrível que já vi. O nó do terninho está malfeito, os cílios prontos para serem penteados. Seus cabelos estão uma bagunça, quase formando um chifre em um dos lados. Hoje Simone mais parece uma Saraivana.

Está divina e olhando na minha direção com uma memória em seus olhos.

Quero correr até minhas pernas cederem. Quero usar o braço para arrastar tudo o que há em sua mesa. Sinto minhas roupas tocando a pele. É assim que os olhos de Simone me fazem sentir quando estão apontados para mim.

– Vamos baixar as armas, está bem? – Ela levanta as mãos para mostrar que está desarmada.

Mãos grandes o suficiente para envolverem meus tornozelos. Engulo em seco.

Para esconder o desconforto, finjo puxar uma arma do bolso e jogá-la de lado. Ela leva a mão a um coldre imaginário na altura do ombro, pega uma arma e a deixa sobre sua agenda. Eu puxo uma faca invisível da coxa.

– Todas elas – insisto, apontando para debaixo da mesa.

Ela leva a mão a perna direita e finge tirar uma pistola de um coldre da coxa.

– Melhor assim. – Solto o corpo na cadeira e fecho os olhos.

– Você é muito esquisita, Moranguinho. – Sua voz não sai grosseira.

Forço meus olhos a se abrirem e o Jogo de Encarar quase me mata. Seus olhos são escuros como a noite, mas possui o brilho da lua. Agora, tudo entre nós está mudando.

– Vai me denunciar ao RH?

Alguma coisa em meu peito se aperta dolorosamente. Então é por isso que ela está com essa aparência péssima.

Passou por um dia terrível ontem, imaginando que seria carregado por seguranças para fora do prédio assim que eu chegasse.

Minha mesa vazia deve ter sido aterrorizante para ela. Simone ficou ali, sentada, imaginando o momento em que seria algemada por ser uma assediadora de mulheres baixinhas. Agora eu entendi. E como fui idiota!

– Não. Mas, por favor, será que poderíamos nunca mais falar sobre... aquilo? – pergunto, e as palavras saem um pouco roucas.

Estou acalmando-a em vez de usar essa oportunidade para aterrorizá-la.

Mais um passo em direção a me tornar a pessoa que quero ser.

Mesmo assim, ela franze a testa como se se sentisse profundamente insultada.

– É isso que você quer? – Ela pergunta como se estivesse desapontada.

Confirmo com a cabeça, mas sou uma mentirosa. Eu só quero beijar você até dormir. Quero me esfregar em seus lençóis e descobrir o que há em sua cabeça e por baixo da sua roupa. Quero parecer boba com você.

A porta do senhor Bolsonaro está entreaberta, então falo o mais baixinho que posso.

– Estou ficando louca. – Digo e Simone percebe a verdade nas minhas palavras.

Estou com olhos loucos, desesperados. Ela assente como se estivesse simplesmente apagando um arquivo no computador. O beijo nunca aconteceu.

Rezo por alguma distração. Um alarme de incêndio. Rosangela me ligando para dizer que nunca mais vai cumprir prazo nenhum. E não sou a única rezando para o chão se abrir.

Jogo do amor - ÓdioOnde histórias criam vida. Descubra agora