Eu um doce, ela: uma porta

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Espero ansiosamente por ver as camisas de Simone  se tornarem mais escuras. Hoje é azul-marinho abrindo caminho para a preta. A camisa preta linda do dia do pagamento.

Minhas finanças são assim: estou prestes a andar 25 minutos depois de sair da L&S para pegar meu carro com Eduardo (o mecânico) e usar o cartão de crédito até estar prestes a atingir o limite. O dia do pagamento é amanhã, então vou pagar a fatura do cartão. Meu carro vai vazar mais daquela coisa oleosa e escura o fim de semana todo, e vou notar isso no dia em que a camisa de Simone for branca como o flanco de um unicórnio. Ligo para Eduardo. Pego o carro e subsisto com um orçamento extremamente apertado. As camisas vão escurecendo. Preciso fazer alguma coisa com o carro.

Neste momento, Simone está com o corpo apoiado no batente da porta da sala do senhor Bolsonaro. Seu corpo preenche a maior parte da passagem da porta. Sei disso porque estou espiando pelo reflexo na parede perto do meu monitor. Ouço uma risada rouca e discreta, nada parecida com o zurro de uma mula, ruído normalmente emitido por Bolsonaro. Esfrego as mãos nos antebraços para acalmar meus arrepios. Não vou virar a cabeça para ver direito; ela vai me pegar olhando. Sempre pega. Aí vou receber um franzir de testa.

Os ponteiros do relógio deslizam lentamente rumo às 17h, através da janela empoeirada, posso ver as nuvens cinza. Leila foi embora há uma hora – uma das vantagens de ser co-CEO é trabalhar durante o horário escolar de seu filho e delegar todo o resto para mim. O senhor Bolsonaro passa longas horas aqui porque sua cadeira é confortável demais e, quando o sol da tarde se põe, ele tende a cochilar.

Não quero deixar parecer que Simone e eu fazemos tudo o que tem de ser feito no último andar, mas, francamente, às vezes a sensação é essa. As equipes de vendas e finanças se reportam diretamente a Simone, que filtra as enormes quantidades de informações em um relatório minúsculo e entrega tudo mastigadinho a um senhor Bolsonaro ansioso.

Eu tenho as equipes editorial, corporativa e de marketing se reportando comigo, e todos os meses condenso seus relatórios mensais em um único documento para Leila... E acho que também entrego tudo mastigadinho para ela. Encaderno as páginas em espiral para ela poder ler enquanto se exercita. Uso sua fonte preferida. Aqui, todo dia é um desafio, um privilégio, um sacrifício e uma frustração. Mas, quando penso em cada passo que dei para chegar a este lugar, começando aos 11 anos, recupero o foco. Eu não esqueço. E enfrento Simone por mais algum tempo.

Levo bolos caseiros aos encontros com os chefes de departamento e todos eles me adoram. Sou descrita como "aquela que vale o próprio peso em ouro". Simone transmite más notícias em suas reuniões com os chefes de departamento e seu peso é medido em outras substâncias.













Olá Moranguinhos, espero que tenham ficado curiosos com esse comecinho da história, deixa a estrela e um comentário para eu saber sua opinião.

Obrigada por lerem!

Jogo do amor - ÓdioOnde histórias criam vida. Descubra agora