Levanto o corpo e sento na cama cuidadosamente no quarto iluminado pelo sol.
Artefatos que lembram que estive doente encontram-se espalhados por todos os cantos. Toalhas, lenços, meu Tupperware lavado. Copos, medicamentos e um termômetro.
Meu pijama do Dorminhoconça dependurado em um cesto; a blusinha vermelha e as roupas que usei para jogar paintball encontram-se amontoadas e prontas para serem queimadas.
Pego o termômetro para confirmar o que já sabia: a febre foi embora.
Usando uma blusinha azul, agarro-me ao colchão quando a vulnerabilidade surge pela primeira vez em algum tempo. Levo a mão ao ombro e percebo que ainda estou de sutiã. Agradeço a todos os deuses que estiverem ouvindo. Mesmo assim, Simone Tebet viu todo o resto do meu torso.
Vou até a sala de estar. Ela continua ali, com o corpo espalhado no sofá, um pé delicado e coberto por meia dependurado para fora do móvel.
Pego algumas peças de roupa limpas e vou cambaleando até o banheiro. Minha nossa!
O rímel não saiu direito no último banho, mas derreteu e me deixou com uma máscara que me faz parecer Alice Cooper no Halloween.
Também tenho os cabelos de Alice Cooper, os quais contenho em um coque. Troco de roupas, enxáguo o rosto o mais rápido que consigo e escovo os dentes. Espero ouvi-la bater à porta a qualquer momento.
A sensação é pior do que a de uma ressaca.
É pior do que acordar depois de ter feito uma performance nua no karaokê durante a festa de Natal da empresa.
Falei demais ontem à noite.
Contei a ele tudo sobre a minha infância.
Simone sabe o quão solitária estou. Viu tudo o que sou. Tem tantas informações que agora sua força vai exalar em nuvens tóxicas.
Preciso tirá-la do meu apartamento.
Aproximo-me do sofá. É um móvel de três lugares, mas nem de longe Simone cabe ali.
Ela sacode o corpo antes que eu possa vê-lo dormindo.
– Acho que vou ficar bem.
Minhas revistas estão organizadas. Não há nenhum sapato debaixo da mesinha de centro. Ela arrumou meu apartamento. Está deitada a poucos metros do enorme armário que abriga os Smurfs.
Acendeu a luz, então teve a prova iluminada de que eu tenho problemas mentais. Agora, Simone se levanta e a sala parece encolher.
– Obrigada por ter sacrificado sua noite de sexta-feira. Está tudo bem, caso você queira ir.
– Tem certeza? – ela encosta os dedos em minha testa, bochechas e garganta.
Deus esses toques.
Sem dúvida estou me sentindo melhor, pois quando ela toca minha garganta, meus seios endurecem em resposta. Cruzo os braços.
– Sim, eu vou ficar bem. Vá para casa, por favor.
Ela me observa com aqueles olhos petróleo escurecidos e a memória de seu sorriso se sobrepõe àquele semblante solene.
Olha para mim como se eu fosse sua paciente. Já não sou digna de um beijo no elevador. Nada como ver alguém vomitando para acabar com qualquer química.
– Eu posso ficar. Se você conseguir parar de surtar.
Vejo pena em seu rosto e sei o porquê.
Mas não foi só um lado que saiu ganhando.
Eu também vi um lado secreto de Simone durante essa noite infinita à qual sobrevivemos. Existe paciência e gentileza sob aquela fachada de cafajeste. Decência humana. Humor. Aquele sorriso.
Seus olhos têm um brilho profundo e seus cílios, apesar de falsos, parecem ter sido feitos para se dobrarem na ponta do meu dedo. Suas bochechas caberiam na palma da minha mão. Sua boca, bem... Sua boca caberia em praticamente qualquer lugar.
– Aquele seu olhar de tesão voltou – ela me diz, e eu sinto as bochechas esquentando. – Você deve estar se sentindo melhor se já consegue me olhar assim.
– Eu estou passando mal – falo fingindo estar séria e ouço sua risada rouca enquanto dou meia-volta.
Simone vai ao banheiro e eu aproveito para respirar várias lufadas de ar.
– Você é meio doente, devo admitir.
Quando ela volta, está segurando a jaqueta, e então me dou conta de que passou a noite toda com suas roupas de paintball. E não está nem fedendo. Como pode?
– Eu preciso...
Estou ficando frenética. Empurro seus ombros quando ela usa os pés para empurrar os sapatos na direção da porta.
– Está bem, está bem. Eu já vou embora. Você não precisa me usar e depois jogar fora. A gente se vê no trabalho, Soraya. – Simone sacode um frasco de comprimidos e joga na minha direção. – Volte para a cama. Tome outros dois da próxima vez que acordar.
Ela hesita mais uma vez, a relutância aparece estampada em seu rosto. Então continua:
– Tem certeza de que vai ficar bem?
E toca outra vez em minha testa, verificando novamente a temperatura, embora ela claramente não possa ter mudado nos últimos trinta segundos.
– Nem se atreva a usar essa situação para me provocar na segunda-feira.
O termo "segunda-feira" ecoa entre nós e ela afasta a mão. Acho que é a nossa nova senha secreta.
– Vou fingir que nada disso aconteceu, se é assim que você quer – promete duramente.
Sinto um nó no estômago. Ela prometeu segredo depois daquele beijo e manteve sua palavra.
– Não tente usar isso contra mim. Quero dizer, nas entrevistas para a nova vaga.
Seu semblante é capaz de derreter a tinta na parede atrás de mim.
– Conhecer a consistência do seu vômito sem dúvida vai me dar uma enorme vantagem. Ah, me poupe, Soraya! – Revira os olhos e sai.
Depois que ela sai e fecha a porta, o silêncio incha e se espalha por todo o apartamento e eu quero ter a coragem de chamá-la de volta.
De agradecer e de me desculpar pelo fato de que, sim, ela está certa, como sempre.
Estou surtando. Para evitar esse assunto, vou dormir.
Quando volto a abrir os olhos, tenho uma nova perspectiva.
É noite de sábado e o pôr do sol dá à parede do quarto um brilho amarelado que lembra a luz de uma vela. Igual a cor da pele de Simone branca mas capaz de iluminar qualquer ambiente.
Meu quarto se incendeia com a força da epifania.
Olho para o teto e admito para mim mesma a espantosa verdade. Eu não odeio Simone Tebet.
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Jogo do amor - Ódio
RomanceSoraya e Simone são completamente opostas, mas obrigadas a trabalharem juntas elas aprendem a conviver na base do jogo do amor ou ódio... Uma convivência que leva ambas a descobrirem sentimentos que antes não eram sequer possíveis e que transforma a...