Inútil

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Estamos na quarta-feira da camisa creme. Simone saiu tarde para almoçar.

Recentemente, lançou alguns comentários sobre coisas das quais gosto e também coisas que faço. Esses comentários são tão precisos a ponto de me fazer ter certeza de que ela anda me bisbilhotando. Informação é poder, e eu não tenho muitas.

Primeiro, conduzo um exame forense da minha mesa. Tanto Leila quanto o senhor Bolsonaro detestam calendários digitais, então temos que usar cadernos como se fôssemos assistentes jurídicos dos tempos de Dickens. No meu, só há compromissos de Leila. Bloqueio o computador obsessivamente, mesmo quando só preciso ir buscar algum papel na impressora. Meu computador desbloqueado próximo a Simone? Seria como entregar códigos nucleares a ela.

Nos tempos da antiga Saraiva, minha mesa era uma fortaleza de livros. Eu guardava as canetas no espaço entre as lombadas. Quando estava arrumando as coisas no novo escritório, percebi que Simone mantinha sua mesa praticamente esterilizada e me senti incrivelmente infantil. Levei para casa meu calendário, cuja temática era "A Palavra do Dia" e também os bonequinhos dos Smurfs.

Antes da fusão, minha melhor amiga trabalhava comigo. Eliziane Gama e eu passávamos horas nos sofás de couro surrado da sala de descanso fazendo nossa brincadeira favorita: rabiscar fotografias de pessoas bonitas em revistas. Eu desenhava um bigode na Bruna Marquezine. Eli pintava um dente de preto. Logo, o que havia era uma mistura de cicatrizes e tapa-olhos, de olhos ensanguentados e chifres de diabo, até a imagem estar tão arruinada que era hora de começar a se divertir com outra.

Eli era outra funcionária que foi cortada, e ficou furiosa por eu não tê-la avisado antes. Não que eu tivesse autorização para avisar, isso supondo que eu soubesse o que estava por vir. Ela não acreditou em mim.

Viro-me lentamente e observo meu reflexo me acompanhar em vinte superfícies distintas. Vejo-me de todos os tamanhos – da caixinha de música à tela prateada. Minha camisa cor de cereja balança e eu giro outra vez, só porque quero, tentando afastar a sensação incômoda que surge sempre que penso em Eli.

Mas enfim, minha auditoria confirma que em minha mesa há uma caneta vermelha, uma preta e uma azul. Post-its. Batom. Uma caixa de lenços de papel para limpar as manchas de batom e secar as lágrimas de frustração. Minha agenda. Nada mais.

Faço uma dancinha sobre o chão de mármore.













Olá Moranguinhos, espero que tenham ficado curiosos com o enredo, deixa a estrela e um comentário para eu saber sua opinião.

Obrigada por lerem!

Jogo do amor - ÓdioOnde histórias criam vida. Descubra agora