Quando chego no condomínio aquela noite, S/n parecia estar chegando da academia. Seus punhos pareciam machucados, como se ela tivesse treinado assiduamente e sem luvas. Suas mãos tremiam um pouco, talvez por causa da dor que sentia.

-- S/n...-- Chamo, mas percebo que ela não me escuta por causa dos fones de ouvido. Ela sobe as escadas em silêncio, como se eu nem ao menos estivesse logo atrás dela.

Observo S/n subir as escadas em silêncio, o semblante fechado e os punhos visivelmente machucados. Havia algo de errado. Ela sempre fora mais aberta, mais leve nas interações comigo, mesmo nas últimas vezes, quando sentia seu desconforto. Hoje, porém, parecia diferente. O modo como ignorava tudo ao redor, absorta em seus próprios pensamentos, seus movimentos quase automáticos, me deixava com um nó na garganta.

-- Ela está se machucando mais do que o necessário -- penso enquanto a sigo de longe.

Chegando ao meu apartamento, não consigo tirar a imagem de suas mãos feridas da cabeça. Treinar sem luvas, ainda mais com tanta intensidade, não é comum para ela... Isso, junto com tudo o que tem acontecido, faz meu estômago revirar. Algo mais profundo estava acontecendo com S/n, algo além do que eu sabia.

Eu observo a porta do apartamento logo ao lado fechada. Passos podem ser escutados e uma dupla de adolescente descem conversando e rindo. Elas passam próximo a porta do apartamento de S/n, mas logo desviam.

-- Cuidado Aisha... Você quase encostou na porta da esquisita... Ja pensou pegar esquizofrenia?!-- Uma das adolescentes fala com a amiga que ri como se essa fosse a piada mais engraçada de todos os tempos. E seguem seu caminho normalmente.

Aquele comentário me atinge como uma lâmina. O riso das adolescentes ecoa enquanto se afastam, deixando um gosto amargo na minha boca. "Esquisita... Esquizofrenia..."— palavras jogadas ao vento, mas carregadas de tanta crueldade. Fico ali, parada, observando a porta de S/n como se pudesse enxergar através dela, tentando entender o que ela pode ter ouvido ou sentido ao longo dos anos, sendo alvo de comentários como esse.

Minha mente retorna ao nosso último encontro. Ela havia mencionado que já a acusaram de coisas antes, que sempre recaía sobre "a esquisita do prédio." Agora, com o que acabei de ouvir, tudo se encaixa de uma forma ainda mais dolorosa. Aquela capa de estranheza que S/n carrega é uma armadura para se proteger de uma sociedade que a marginaliza.

Respiro fundo, meu instinto de protegê-la se intensifica, mas também sei que ela é uma mulher forte, que prefere enfrentar as próprias batalhas sozinha. Mesmo assim, algo dentro de mim me diz que talvez ela precise de alguém que a veja além da imagem criada pelos outros.

Subo as escadas, o cansaço do dia tomando conta de mim, mas com a cabeça girando com pensamentos sobre S/n e os mistérios que a cercam.

Na manhã seguinte, eu estava decidida a te tentar consertar o erro que cometi. Eu preparei alguns bolinhos e fui para a porta do apartamento da frente. Eu hesitei antes de tocar a campainha, mas quando o fiz percebi que não tinha mais volta.

S/n abriu a porta com o rosto levemente inchado, como se tivesse acabado de acordar. Ela fica tão linda assim...

-- Oi... Eu te acordei?-- Pergunto, tentando suavizar o nervosismo que me acompanha. S/n esfrega os olhos levemente, mas sorri, apesar do cansaço evidente.

-- Não, tudo bem... Eu estava acordando mesmo.-- Ela responde com a voz um pouco rouca, ajeitando o cabelo enquanto me encara com uma leve curiosidade.

-- Eu trouxe bolinhos... Sei que não vai apagar o que aconteceu, mas queria me desculpar pelo que disse ontem. Eu... estava estressada com o caso e acabei descontando em você. Foi errado da minha parte.-- Estendo a pequena cesta para ela, sentindo o peso das palavras no ar.

Ela olha para os bolinhos, depois para mim, seus olhos suavizando um pouco.

-- Billie... Eu entendo. De verdade. Não foi a primeira vez que me colocaram nessa posição, sabe? Mas... é bom ouvir você se desculpar.

Por um momento, o silêncio se instala, mas não é desconfortável. Ela abre mais a porta e me convida para entrar.

-- Quer tomar um café? A gente pode comer esses bolinhos juntas.

Sorrio, aliviada com sua receptividade.

-- Eu adoraria.

Ela nos guia em direção a cozinha, logo vejo-a ligando a cafeteira e colocando todos os ingredientes ali.

-- Eu... Você não se sente mal com... Com o que fazem com você?-- Pergunto e ela ri fraco

-- Seria psicopata se não me sentisse mal -- Responde com um leve tom de humor, como se quisesse minimizar a situação -- Eu acho que aprendi a conviver com isso... As pessoas sempre vão me odiar, por eu ser diferente, e eu sempre vou ter que seguir em frente... É o ciclo da minha vida

-- Isso não é justo...-- Digo, sentindo um aperto no peito ao ouvi-la falar com tanta resignação. -- Você não merece ser tratada assim só por ser... você.

S/n dá de ombros, como se aquilo fosse um fato incontestável.

-- O mundo não é justo, Billie. A gente só tem que fazer o que dá pra sobreviver, sabe?

Ela termina de preparar o café e nos serve em duas canecas. Enquanto coloca os bolinhos na mesa, sinto um misto de raiva e tristeza por ela ter que lidar com tanta crueldade.

-- Mas isso não significa que você tem que aceitar calada.

Ela me olha por um momento, pensativa.

-- Talvez eu não precise, mas... o que eu ganho enfrentando o mundo, Billie? Mais dor, mais ódio? Eu prefiro evitar problemas... E também, por que se importar com quem não se importa comigo?-- Ela senta-se à mesa, mexendo distraidamente o café antes de dar um gole.

Suas palavras me fazem refletir, e percebo que, por mais que queira lutar por ela, essa é a batalha dela. Mas talvez... só talvez, eu possa ajudá-la de alguma forma.

-- Bom... Se precisar de alguém, mesmo que só pra te ouvir, eu estou aqui.

Ela sorri suavemente.

-- Obrigada. Acho que isso já ajuda muito.

-- Hoje eu estou de folga -- Comento e ela sorri de lado

-- Eu também estou...-- Responde me fazendo sorrir

-- Nesse caso, podemos nós duas fazer algo legal

S/n ergue uma sobrancelha, claramente surpresa com a minha sugestão.

-- Algo legal?-- Ela repete, como se estivesse tentando imaginar o que eu poderia ter em mente.

-- Sim! Talvez... uma caminhada? Ou um passeio pelo bairro? Quem sabe até pegar um filme mais tarde?-- Sugiro, sentindo a leveza do momento e a oportunidade de passar um tempo com ela, longe de qualquer complicação do trabalho.

Ela dá um sorriso tímido, como se não esperasse por isso.

-- Eu gosto da ideia. Faz tempo que não faço algo diferente. Qualquer uma dessas opções parece boa.

-- Então está decidido -- digo, empolgada. -- Podemos sair por aí e ver no que dá. Vamos improvisar!

S/n ri baixinho, concordando.

-- Improvisar soa ótimo... Já estava precisando de algo mais leve.

A tensão de antes parece diminuir, e sinto que talvez essa seja uma chance de me reconectar com ela, deixar de lado qualquer desconfiança que plantou raízes e apenas aproveitar o dia.

-- Eu vou tomar um banho e me trocar...-- S/n diz simplista

-- Claro, eu te espero -- respondo, tentando não parecer muito ansiosa.

S/n desaparece pelo corredor em direção ao banheiro, e eu aproveito para dar uma olhada ao redor da cozinha, observando como tudo reflete a personalidade dela: simples, mas com detalhes que revelam seu jeito único.

Enquanto espero, me pego pensando em como as coisas entre nós mudaram. Apesar de todos os questionamentos e as situações estranhas, algo me mantém próxima dela, como se houvesse uma força invisível que nos ligasse.

Dou um suspiro e me sento à mesa, aguardando o momento em que ela voltará, curiosa para ver onde esse dia nos levará.

Silent Obsession (Billie/You G!p)Onde histórias criam vida. Descubra agora