Por wagnerpask
Moleque.
Antes, quando tinha pai e tênis novos, me chamavam de menino; agora que sou órfão e ando descalço, nas ruas me chamam "moleque". Até meu décimo aniversário, quando o boy da esquina matou meu velho, eu somente conhecia um tipo de bala: a de chupar. Quando se tira a vida de pai, mata também a inocência de um guri. O Estado fez sua parte, mas inocência perdida não se restitui, a liberdade sim.
*****
No calor do meio dia, imersa na massa humana que empunhava enxadas durante o fustigo de Setembro, destacava-se Josefa. Não havia como passar despercebida aquela jovem no auge dos seus 16 anos que, mesmo com mãos calejadas e testa manchada pela viscosa mistura de suor e poeira, ainda era a mais bela entre todas as moças daquele nordeste de desafios.
Josefa arqueava o corpo e com mãos acostumadas à brutalidade daquela labuta segurava o cabo da ferramenta e a fazia deslizar seguidas vezes sobre a terra ainda molhada pela chuva que abençoara aqueles trabalhadores na noite passada. O sol, desinteressado do sofrimento que causava, saiu de trás de uma nuvem, fazendo o suor escorrer em bicas pelo rosto de cada uma daquelas pessoas. Assim foram as horas. Até que, próximo ao meio-dia, todos pararam com a lida e formaram pequenos círculos familiares sobre o mar marrom que eram aquelas terras capinadas.Josefa pôs a enxada sobre o ombro e andou até seu pai, sua mãe e irmão caçula (o único dos cinco ainda solteiro). Aquela era a melhor hora do dia. Por mais que a vida fosse dura e repleta de calos, estar com a família era uma dádiva que Josefa tinha e jurava jamais abrir mão. Ela amava aquela gente, mas o coração consegue amar mais de uma pessoa. Amar é difícil: muitas vezes quando você se entrega de alma a alguém, acaba sendo levada para longe de outros que dentro do seu peito moram.
Um jovem homem surgiu no caminho daquela moça. Um homem de corpo castigado pela lida diária, mas que sabia ser carinhoso; de mãos pesadas e ásperas e secas, mas que sabia afagar; um alguém cujas energias e o suor eram drenados pelo sol até não restar nada, mas que ainda assim achava forças para fazer serenatas sob a lua da madrugada. Aquele era José. Aquele era o homem destinado a ser as asas daquela jovem. Fora ali, na impiedosa realidade de uma terra árida controlada por "coronéis do agronegócio" e sonhos de uma vida melhor, que a garota descobriu uma nova espécie de amor: mais intimo, mas quente, mais urgente, mais atrevido.
Quando José surgiu na vida daquela moça, muita alegria houve. Eles eram um casal unido e cheio de sonhos. Queriam filhos, queriam casa, queriam, por mais simplista que parece, uma vida melhor, longe das carcaças de gado e da fome eminente. Sonhos... o combustível da vida são os sonhos... se não sonharmos, de que adianta viver, matutavam os apaixonados, deitados na varanda, admirando as estrelas no céu de verão.O noivado foi breve, durou menos de um ano. Josefa e José formavam um casal feliz. Ele, com 21 anos, ela com 17. Jovens e felizes. Mas nem sempre a vida é fácil. Para fugir da fome, José e a esposa subiram no dorso de uma fumegante besta mecânica que rumava ao sul e distanciaram-se dos amados familiares. Naquela noite choveu no sertão... gotas despencas do céu negro; chuva temperada com as lágrimas que escorreram do rosto dos filhos daquela terra, filhos que o destino daria um jeito de nunca mais permitir que ao lar regressassem.
Lá, para onde a criatura movida a diesel os levou, um tio do jovem poderia lhes ceder um barraquinho na comunidade onde morava e o pai de família tentaria a vida como zelador ou qualquer outro trabalho que Deus lhe oferecesse. Trocaria a enxada pela vassoura e, como planejara, uma vida por outra. Aquela era uma jornada arriscada, José sabia. Não estava a fazendo por si ou pela esposa, mas pelo bebê que ela carregava no ventre.
Era por aquele pedacinho de gente que jamais se daria por vencido! Se a vitória dependesse das fibras e da coragem daquele pai, o fantasma da miséria não mais assombraria aquele lar!
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Projeto "Vamos Conversar" (1ª Temporada)
Non-FictionQuais questões te incomodam? Quais ideias podem ser aplaudidas? Por que? Como? Onde? Com quais propósitos? Quem é você? Quem somos nós? Para onde vamos? O que está acontecendo? Somos bilhões de vidas envoltas em perguntas; bilhões de mentes question...