Lembranças.
Foram quase quatro horas de viagem, mas cheguei a meu destino. Havia anos que a saudade começara a apertar meu peito. Ali, naquelas terras outrora verdejantes, nasci e fui criado. De inicio resisti ao desejo de voltar às raízes. Relutei até não mais poder encarar de frentes os instintos que gritavam dentro de mim ordens de regresso.
Regressei!
Durante o tempo que passei na estrada relembrei o passado. Fui garoto do interior até meus dez anos: com meus primos cacei passarinhos, pesquei à beira de riachos, subi nas jabuticabeiras para colher os melhores frutos.
Minha primeira década de vida jamais será esquecida.Contudo, se passei dez anos no Éden, também sobrevivi outra década fora, perdido em um mundo cinza e poluído, respirando ar com fuligem e bebendo água que talvez tenha sido filtrada das privadas de outros cidadãos. Às vezes sentia a saudade falando parte dentro de mim, mas me controlava. Mas um dia não aguentei e viajei.
Adeus asfalto e olá terra vermelha.
Como disse, foram quatro horas de viajem. Estas podem ser divididas da seguinte maneira:
1ª hora: fui tomado por euforia e lembranças de um paraíso bucólico. Minha boca encheu-se de saliva há quanto tempo eu não comia um bom bolo de fubá ou uma espiga de milho verde? Meu coração, se possível fosse, choraria as alegrias de memórias revividas.
2ª hora: fui ultrapassado por três carros do ano e em sentido oposto contei outros sete (todos muito mais caros que o meu). Isso me fez lembrar: quando eu aqui morava, só o Tião do armazém tinha carro, e era um Fusca. Meu coração pulsou mais forte, pois aquele povo, o meu povo, estava prosperando.
3ª hora: a estrada por onde passei era rodeada por quilômetros de tocos de árvores serradas e galhos moídos e mutilados, tratores, motosserras, foices e galões de gasolina. Aquilo era um retrato da devastação. Onde estaria o pinheiro onde entalhei, dentro de um coração desforme, as iniciais minhas e de minha primeira namorada? Se possível fosse, meu coração choraria mais uma vez, mas agora de dor e amargura: aquele cenário degradante, quando eu ainda era um menino, fora uma mata de exuberância inigualável e dona de uma magia que me fazia crer que ali, além de habitada por tatetos, quatis, veados e outras criaturas de Deus, muito bem poderia ser o lar de fadas, duendes e ninfas dispostas a espalhar alegria pelo mundo.
Mas a alegria morreu junto de cada árvore que sucumbiu diante do ronco de todos aqueles motores.
4ª hora: já perto da vila onde ainda mora minha tia, vi algo que jamais esperei que fosse existir ali. Estacionei o carro à beira da estrada e desci. Como aquela coisa era grande e alta: um amontoado de aço com uma base de dois metros e meio quadrados que subia afinando e afinando até, ao chegar a uns 15 metros de altura (ou mais), dava em uma haste que lembrava um cabo de vassoura.
A grande torre era cercada por muros de tijolos vazados e placas com a escrita “CUIDADO”.
Tirei do bolso meu celular e vi na tela o ícone de rede indicando o óbvio. Quando fui embora, ali não pegava sequer teve, mas as coisas estavam mudando. Desta vez meu coração nada falou. Talvez ele também estivesse confuso: cadê o mundo do qual tamanha saudade senti?
Cheguei à vila.
Minhas lembranças diziam que ali havia poucas casas, uma cancha de areia, o armazém do Tião. Não lembro ao certo quantas casas compunham aquela comunidade, mas não devia passar de 20, e todas humildes. Havia passado dez anos fora, a minha vila devia estar muito maior, mas para a surpresa deste, muito pouco fora alterado: ainda havia a cancha, o armazém ainda estava lá (embora agora fosse um grande sobrado com câmeras e Wifi), as vinte casas foram reformadas, e agora eram belas residências cujo valor este que a ti escreve jamais seria capaz de pagar.
Fiquei intrigado: o Tião tudo bem, sempre fora rico e mão-de-vaca, mas e os outros, como conseguiram a proeza de acumular tanta riqueza? Era, para mim, de difícil compreensão, afinal, quando fui embora eles ainda eram agricultores que prantavam para comer. Mas agora tudo estava mudado. Tinham carros mais caros que meu apartamento, roupas de marca, tevês de primeira e...
— Que tal jogamos uma pelada — dirigi-me a meu primo, tentando matar a saudade dos tempos em que fazíamos os mais belos gols da vila.
— Só se for no PS4, tô cansado demais.
Tudo bem. Nós sentamos no sofá, peguemos nossos joysticks e demos play em um épico Barcelona vs Real Madri.
— Que tal pescarmos amanhã — sugeri.
— Não dá.
Pausei nossa partida e lhe mirei como quem solicita uma resposta melhor, e ele entendeu.
— O rio secou ano passado.
Assenti e voltei ao jogo. Mas outra pergunta me veio:
— Aqui ainda tem todos aqueles passarinhos? Acho que vou acordar bem cedo amanhã para ouvir o canto dos sabiás, dos canarinhos, guaches, saracuras e bentivis.
— Acho que eles migraram: faz três anos que quase não aparecem aqui.
— Jura? Três anos?!
— Sim. E estão fazendo uma puta falta. A gente ganhou muito dinheiro com eles por aqui. — Meu primo se dobrou todo, apertando o botão que fazia o atleta do jogo chutar a gol. — Você não sabe o quanto esses ricos da cidade pagam por um canário.
Larguei o joystick.
— Vocês venderam todos os passarinhos?
— Todos? Claro que não. Eles só devem estar voando em outro lugar. É a natureza. Logo voltam.
— E se não voltarem?
— Eles voltarão. São só passarinhos. Tem muitos no mundo.
— Mas e se não voltarem?
— A gente vai perder muito dinheiro. Eles são pepitas emplumadas.
— Isso é crime, sabia?
— Né nada. Até delegado já veio comprar aqui...
Onde estava o paraíso de minhas lembranças? Bom, talvez ele não existisse mais.
Voltamos ao jogo. Mas então, entre a terceira e a quarta partida, já temendo a resposta, perguntei se ainda existiam as árvores que meu avô plantou. Entre elas a jabuticabeira que tantas vezes escalei. Torcei com fervor que a resposta fosse um sim. Minha boca carecia de uma jabuticaba suculenta, mas com a resposta meu mundo desabou:
— Não tem mais. Papai vendeu tudo pra fazerem carvão, e no descampado prantamos capim. Lá deu um pasto de primeira — empolgou-se. — Amanhã te levo lá. Você vai ficar de queixo caído, nosso gado é lindo pra caralho.
Estava farto. Meu Deus, onde estava o paraíso? Pensei em jogar o joystick na parede. Onde eles estavam com a cabeça? Será que não reconheciam o mundo perfeito onde viviam? Será que era por isso que insistiam em tudo destruir? Eu não entendia. Eles precisavam ouvir umas boas. Por mim teria indo embora naquele exato momento, mas...
— Venham jantar, meninos — minha tia chamou.
— O que tem pra comer — gritou meu primo.
Feijoada (torci), arroz, carne de porco, limonada e de sobremesa o delicioso Bolo de fubá. Eu queria recobrar os sabores do passado. Se não tinha mais as árvores frutíferas, nem os riachos onde pescar, as aves que tanto amei nem a simplicidade que me fazia falta, quem sabe ao menos o paladar de outrora ainda existisse.
— Filhinho, tem pizza, batata frita, coca e sorvete pra sobremesa.
Desisti ali. Pelo visto lembranças são apenas memórias: fantasmas que nos assombram sem jamais tomar forma física.
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Projeto "Vamos Conversar" (1ª Temporada)
Non-fictieQuais questões te incomodam? Quais ideias podem ser aplaudidas? Por que? Como? Onde? Com quais propósitos? Quem é você? Quem somos nós? Para onde vamos? O que está acontecendo? Somos bilhões de vidas envoltas em perguntas; bilhões de mentes question...