Mini contos

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Soldado

O soldado buscou proteção atrás de um veiculo transpassado por numerosos projéteis. O coração saindo pela boca anunciava: estava em guerra. Estava o jovem servindo no Vietnã ou subindo algum morro no Rio? Não, Bernardo e seus companheiros pelejavam em uma área rural; um cenário bucólico, cercado por grandes florestas gotejantes e rios cheios de vida, um território onde grandes colinas intocadas elevavam-se em todas as direções, criando um grande domo verde ao redor do acampamento que servia de campo de batalha.

A saraivada de estanho cessou. Bernardo olhou para além das janelas vazias daquele veiculo e examinou o cenário: o grande assentamento onde há dois anos o MST tomou posse ainda estava lá, cobrindo de madeira e telhas a vastidão daquele descampado onde outrora estivera plantado soja e feijão. O policial detestava aquela missão... não estava simplesmente tentando sobreviver ou derrotar alguns noias filhos-da-puta... não, Bernardo sabia que dentro daquele labirinto de barracos precários havia homens de bem, mulheres de família e crianças amedrontadas. Como aquela laia tinha coragem de usar pobres almas desesperadas como escudo e camuflagem na maldita e infindável guerra do tráfico, matutou o guerreiro, voltando a proteger-se, já descrente da vitória. Sobreviver é uma arte: ataque se puder, recue se necessário.

— Rapaz, atenção  — chamou o líder do pelotão, esgueirando-se até Bernardo.  — Não tem mais o que fazer aqui! Eles são muitos, vamos recuar —  os disparos voltaram ensurdecedores, obrigando o capitão a tapar com a mão um dos ouvidos antes de continuar as instruções. — Escuta, seis atiram, seis retrocedem... entendido?

Bernardo assentiu. O capitão era um homem prudente. Não deixaria vidas serem perdidas por mero orgulho. O soldado valorizava isso no líder. Sabia que enquanto as missões estivessem nas mãos cuidadosas de Nogueira, teria mais chance de voltar para a casa onde esposa e filho o esperavam. Toda manhã, quando o jovem soldado deixava a cama, pronto para mais um dia nas ruas, cuidava de gravar com precisão o rosto da esposa e do bebê na memória. Ele conhecia os perigos. Sabia que aquele mundo estava infestado de pessoas que desprezam a vida alheia; pessoas com tesão em causar dor; uma gente pérfida, carregada pelas correntezas negras da marginalidade. Sabia que precisava memorizar bem o rosto daqueles que amava, pois se algo acontecesse, certamente não teria tempo de vê-los mais uma vez. Bernardo colocava diariamente a vida em risco por um soldo que mal pagava as fraldas de João, mas não era valorizado. Quantas vezes ficara sem combustível nas viaturas? Quantas vezes ficara meses sem ser remunerado por pôr a vida em risco? Quantas vezes foram entregues sem armas na boca da besta? Haveria aquilo de ser uma conspiração? Será que os líderes não entendiam que por de baixo daquelas fardas estavam homens com família e vidas a zelar?

Chega, querido, suplicou Aline, a esposa de olhos avermelhados, com o bebê adormecido encostado no peito na manhã da batalha na fazenda Santa-Fé. Querido, por favor, saia da corporação, se o problema for dinheiro vamos dar um jeito. Não quero mais sofrer todos os dias. Não quero ficar olhando todas as tardes para aquele relógio, rezando pra você voltar; rezando para nosso filho não ficar órfão. O problema é dinheiro? A esposa baixou a cabeça, as palavras saiam mais nazaladas que de Prates. Posso morar em qualquer pardieiro, desde que você esteja comigo.

Não é questão de dinheiro, Amor, Bernardo respondeu, afagando a testa delicada do bebê nos braços da mãe. Estou lá não por dinheiro.

O que você recebe, perguntou Aline, virando de costas para o marido, escondendo as lágrimas que escorriam pela face. Alguém já perguntou seu nome?

*****

Bernardo e mais cinco soldados aguardaram o cessar dos disparos inimigos e saíram dos esconderijos para revidar enquanto o restante recuava.

Projeto "Vamos Conversar" (1ª Temporada)Onde histórias criam vida. Descubra agora