Pai.
O homem trajado com roupas de um negro que lembravam a plumagem de um corvo ajambrado adentrou no quarto que por vários dias ficara selado. Pérolas escorriam de seus olhos, isso era visível (olhos vermelhos, digamos assim, de tanto chorar).
O homem ajeitou o nó da gravata, acendeu a luz do abajur à cabeceira da cama onde dormia o saudoso homem que lhe ensinara a andar de bicicletas e abriu a primeira gaveta da cômoda: estava vazia.
Angustia!
Onde estaria?
O homem arrancou cada uma das três gavetas do móvel de madeira e jogou na cama. Merda! Não havia nada. Remexeu, procurou, chorou, gritou, esmurrou o ar, mas nada aconteceu! Onde estaria o tesouro? O homem desacorçoou. Pelo visto não havia tesouro.
Se assentou na cama, meteu a cabeça entre as pernas e lamentou. Que maldita dor era aquela que lhe transpassava o coração como a frecha de um caçador de felicidades? Estava completando quinze dias, não devia ainda sentir aquelas pontadas desgraçadas. Por que, diabos, chorara mais agora do que no momento em que viu aqueles olhos castanhos que lhe fitavam cerrando-se pela última vez? Será que quando viu aquela vida vasando pela boca daquele homem não atinou-se para a verdade? Será que apenas agora, voltando a ser um menino chorão que não tem um herói no mundo, finalmente lhe caiu a ficha?
Se quer saber, caro leitor, o homem de vestes elegantes nem sequer entendia a porra do motivo que tanto o fazia chorar. O de cujus não era alguém que merecia lágrimas. Não, não era! Estava decidido: pararia de chorar! Será que pararia? Às lagrimas podem ser pequenas gotas de um líquido salgado que escorrem pela face e se desmancham no chão, parecem delicadas, mas na verdade são poderosas, fortes e incontroláveis. Elas escorrem; nós tentamos segurá-las, mas elas escorrem ainda mais. Homem não chora? Homem chora!
Forçando os olhos para enxergar na claridade parcial, o homem de terno negro olhou para o lado, onde duas das gavetas se encostavam.
Não pode ser!
O homem as apanhou e examinou. A primeira gaveta que fora arrancada continuava ali, vazia, mas existia, emanando dela, uma certa energia.
O homem de negro golpeou com o nó dos dedos o fundo de madeira. OCO! O homem examinou até que conseguiu arrancar o fundo da gaveta. Voilà!
Uma carta. A carta! Lágrimas sem noção, caíram e molharam um cantinho da folha branca.
O homem desdobrou o papel e começou a ler:
"Se está lendo, meu filho, é porque estou jogando baralho com Jesus Cristo".
Se estou lendo, o homem pensou, é porque abriram seu testamento.
"Eu morri".
Claro que morreu.
"Fui um péssimo pai, não é mesmo?".
Foi sim, um péssimo pai. O pior que já vi.
"Mas ainda assim eu sou seu pai".
É fácil dizer. Comeu minha mãe e eu nasci. Só por isso é meu pai?
"Sei que não te dei motivos para me amar. E não é agora, que batia as botas, que tentarei ganhar seu afeto. Claro, você não tem motivos para recordar com alegria de mim: enquanto vivo estive distante; e agora que me fui, tudo que deixei fora um carro velho, uma coleção de selos, uma camiseta do Palmeiras, dois mil reais em dívidas no bar do Alemão e uma carta. A carta! A sua carta".
Nasceu pobre e morreu pobre.
"Sei que fui um cafajeste. Meu filho, já fui um rapaz viril (igual ao que você se tornou), mas hoje em dia, jogado nesta cama velha, sendo devorado vivo pela besta do câncer, não sou metade do homem que fui um dia; mas ao mesmo tempo sou mil vezes mais homem do que jamais fui. Hoje em dia reconheço tudo que fiz e rezo, pedindo perdão por todas as iniquidades que cometi".
A cama! O homem de negro estava sentado sobre a mesma cama onde o escritor suspirara pela última vez. O leitor recordava-se com nitidez tudo que se passou naquele quarto empoeirado. Se lembrava do homem deitado, sem forças para se pôr em pé; sem forças para lutar pela própria vida. Ou melhor, lendo aquelas últimas palavras, o filho não sabia mais se o velho pai não tinha forças para vencer aquele devorador ou apenas não queria mais lutar.
"Será que estou jogando buraco com Jesus Cristo ou estou no buraco jogando queimado com o Diabo? O que você acha, meu filho? Quais as lembranças que deixei na sua infância? Lhe ensinei a andar de bicicleta, isso é verdade. Mostrei como assoviar para as gatinhas da vizinhança e como passar a mão na bunda delas e não ser pego em seguida. Filho, lhe ensinei como beber um bom vinho e não se embriagar; ensinei como fazer um "gato" impossível de ser descoberto. Ensinei tantas coisas ruins, não é mesmo? Ensinei como agredir uma mãe; como torrar no bar todo um salário; como trair uma mulher de ouro e ainda a surrar; ensinei você a ser tudo que um homem não deve ser, mas por sorte você sempre foi um péssimo aprendiz".
Você não prestava, tentou o homem resmungar, mas tudo que saiu foi um suspiro inaudível.
"Filho, saí de casa quando você ainda tinha quinze anos. Quinze anos que me recordo com detalhes. Eu não prestava, mas você era um filho maravilhoso. Eu não merecia, mas você, quando me via deitado no sofá, sentindo as dores da ressaca, corria até mim e me beija como quem diz 'papai voltou pra casa'. Papai sempre voltou pra casa, mas nunca esteve presente nela".
Nunca mesmo!
"Sempre tive orgulho do meu garoto. Um menino forte, bonito, inteligente. Sempre tive orgulho de você. Talvez seja duro de acreditar, mas eu não te amava; ainda te amo".
Então por que foi embora?
"Quando você tinha quinze anos eu fui morar com aquela mulher (ela me largou ao léu quando peguei esta enfermidade). Sua mãe deve ter lhe ensinado a me odiar: ela tinha razão. Até eu me odeio".
Ela ensinou sim.
"Você não me viu na sua formatura, nos seus aniversários nem em nenhum natal, mas eu lhe vi. Vi quando pegou o canudo (você estava lindo: um príncipe moreno); vi você festejando naquela lan house quando descobriu que tinha passado no vestibular (você estava com um suéter vermelho. Não foi eu quem lhe deu ele, mas disse a mim mesmo que havia sido, e chorei: meu menino se tornara um homem); vi você, sua mãe e seu padrasto comemorando unidos os natais (eu estava do lado de fora, espiando pela janela com seu presente no braço, mas não tive coragem de bater à porta). Filho, talvez você não acredite em mim".
Devo acreditar?
"Mas eu te amo. Você é meu filho (por mais que talvez você não me aceite como pai), meu tesouro mais preciso. Te deixei todos meus bens, embora eles talvez sejam levados pelo dono do bar para cobrir minhas dívidas. A carta que te deixei é o único quinhão que posso lhe garantir".
O homem secou as lágrimas.
"Parece que estou pedindo perdão por tudo e querendo um amor póstumo, mas não é isso. Não me entenda mal, filho querido. Não quero que me ame nem que me aceite; quero apenas que saiba que sempre te amei. Amei tantas coisas nesta vida: amor de homem e mulher; amor de filho e mãe; amor de todos e o dinheiro, mas o maior de todos meus amores foi o 'filho – pai'".
Droga!
"Não espero que um dia me ame ou diga a alguém que sou seu pai, mas eu lhe amei e tenho e tive orgulho de dizer 'aquele rapaz bonitão é o meu filho".
Quem sabe eu te ame, pai, disse o homem secando as lágrimas. Quem sabe eu te ame.
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Projeto "Vamos Conversar" (1ª Temporada)
Non-ficțiuneQuais questões te incomodam? Quais ideias podem ser aplaudidas? Por que? Como? Onde? Com quais propósitos? Quem é você? Quem somos nós? Para onde vamos? O que está acontecendo? Somos bilhões de vidas envoltas em perguntas; bilhões de mentes question...