Mini contos.

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Fugindo à regra, eis um conto mais longo:

Jonathan (parte 1).

“Eles falam, mas eu não sou especial”, pensava Jonathan, no térreo, estacado diante da porta do elevador, esperando a gaiola metálica se abrir. Levantou o olhar, mirando o visor que, preguiçoso, denunciava a morosa descida daquela caixa claustrofóbica.

Por seu rosto pálido e perfeitamente circular escorreu uma cristalina gota de suor. Mas aquele pingo gelado não era oriundo dos mais de quarenta graus que maltratavam a gente que transitava feito formigas do lado de fora do grande prédio.

Não, caro leitor, o garoto que insistia em espirito dizer “eu não sou especial” suava de tensão. Seu corpo transpirava nervosismo. O elevador descia... descia... descia... e o desespero dentro do coração de Jonathan aumentava. Seu peito martelava forte... Nossa, o rapaz de olhos puxados, boca pequena e traços joviais esperava agoniado. Sabia que ao entrar naquele elevador não teria coragem de, na metade do caminho, desistir da tarefa decisória de sua vida; um divisor de águas em sua existência.

Todos que o taxaram até ali como “diferente”, “deficiente”, “débil mental” e “retardado” teriam um motivo enfim para nunca esquecer seu nome. Quando a porta da jaula fosse aberta e nosso herói chegasse à cobertura do prédio... bom, nesse momento tudo mudaria. Jonathan seria lembrado afinal. Seria na cobertura daquele prédio, acima do 18° andar que construiria sua história. Acima dos rios negros de asfalto e próximo às plumosas nuvens alvas. Seria próximo do céu que mudaria a história de sua existência. Queria mais que nunca ter as asas da liberdade, e não apenas ser um peixe que cego nada sob as águas da ignorância, imerso em profunda e predadora escuridão.

Jonathan conhecia as consequências do que estava prestes a fazer. Sabia que aquilo marcaria sua vida para sempre. Enfim as feridas de uma infância marcada por piadas maldosas, e uma adolescência corrompida por insultos que arruinavam sua autoestima seriam expurgadas. Era chegada a hora de ditas as regras do próprio destino. Era enfim chegado o momento de derrotar as Parcas ditadoras e tornar-se o deus de sua própria vida. Não havia volta! Não havia porque voltar!

Uma sombra projetou-se da rua, enegrecendo os pés de nosso paladino engomado. Um senhor surgiu pela porta do saguão. Andava com passos rápidos e decididos. Jonathan não o podia ver, mas ouvia o ecoar do som dos sapatos daquele homem tocando o piso, talvez italianos, talvez comprados em alguma barraca de camelô. Da mesma forma que ouvia, podia também sentir, como sempre sentiu, o peso daquele olhar maldoso lhe fazendo arder a pele da face. O rapaz não precisava olhar as pessoas para sentir o que elas pensavam. Pensavam coisas ruins, coisas maldosas, coisas terríveis. O garoto baixinho e rechonchudo não precisava estar mirando o belo homem de meia-idade que entrara pela porta para saber que este o estava fulminando com olhares de piedade ou desdém.

O homem aproximou-se mais. Faltavam poucos passos para os caminhos dele e de Jonathan se cruzarem. O rapaz sabia disso. O jovem olhou para cima, torcendo que o elevador chegasse logo, mas para sua decepção este parou no segundo andar, provavelmente para tragar novos passageiros.

— Olá, filho — ressoou a voz grave do senhor elegante. — Está perdido? Precisa de ajuda?

Jonathan odiava ser deseducado, mas estava farto daquela realidade. Todos que o viam queriam taxa-lo de diferente e dependente. Mas ele não era isso. Se insistia tanto em dizer a si mesmo “eu não sou especial” é porque “ser especial” lhe impunha o gravame de ser, para a maioria da sociedade, um “deficiente”. Jonathan não era nem jamais seria diferente ou especial. Ele era normal e sabia disso. Mas não importou até ali o quanto batesse nessa tecla, sempre alguém surgia para mostrar piedade. MERDA! Estava farto daquilo. Por que as pessoas não podiam aceitar que ele era apenas um portador de síndrome de Down... teria todo aquela gente prazer em fazê-lo implorar por copos d’água e trocados para comprar balas? Às vezes Jonathan acordava pensativo, refletindo sobre episódios do seu passado. Sempre soube que era DIFERENTE. Não especial, não deficiente, não menos nem mais. Apenas diferente. Desde menino, época em que era rejeitado pelos garotos da vila e constantemente chamado de “retardado”. Aqueles foram tempos de desafios e provações. Além de sofrer desprezo da comunidade, em casa seu próprio pai fazia questão de lamentar-se pela maldição de Deus lhe ter castigado com um filho “débil mental”... Jonathan ainda ouvia com clareza os gritos noturnos da mãe quando aquele homem chegava alcoolizado, ameaçando de matar aquela “abominação”.

Projeto "Vamos Conversar" (1ª Temporada)Onde histórias criam vida. Descubra agora