Monstro no espelho.
A garota finalmente adormeceu. A adolescente, depois de muito chorar e praguejar, se deixou embalar nos braços do sono; uma última tentativa de fugir da prisão sem muros a qual estava reclusa. Maldita cela insalubre e desumana; maldito carcereiro que indicava à moça o os perversos caminhos da vingança. A jovem morena enfim havia dormido. Estava exausta. Aquela noite fora a pior entre as piores de todos seus 15 anos. Voltou para a casa às 23H, adormeceu às duas da manhã, mas apenas uma hora depois o depravado incitador à “libertação” tornou a despertá-la:
— Joana... Joana... acorde, querida Joana.
A menina ouviu aquela voz dispersa no ar, mas recusava-se a abrir os olhos. Sabia de onde viriam os conselhos do Diabo e o que eles incitariam. Vozes que lhe sussurravam palavras de falsidade; palavras que não precisavam ser ouvidas. A morena chegou algumas vezes a cogitar tornar-se surda, contudo aquilo lhe pareceu tolo, pois a voz do seu zombador não estava ali para todos ouvirem. Não, a voz que a atormentava incessantemente martelava dentro da cabeça; em um espaço onde apenas ela poderia ouvir; em um espaço onde apenas a própria Joana poderia argumentar, sem direito a ombro amigo ou advogado; um espaço tenebroso onde figurava “Joana por si mesma, todos contra ela”: lúgubre prisão cega de esperanças; perverso calabouço onde a força de vontade não conseguia sobreviver nem multiplicar-se.
— Abra os olhinhos, Joaninha — a voz prosseguiu em tom escarnecido. — Abra esses olhinhos de porquinha. Não quer conversar comigo? Abra os olhinhos e vamos pensar na vingança... vingança... muito sangue... morte... vamos fazer eles pagarem. Ou vai me dizer que já se esqueceu de tudo, Porquinha?
Joana virou-se de bruços, apanhou um travesseiro e tapou as orelhas. Sabia que não funcionaria, mas tentou. Droga! A voz persistiu, persistiu, persistiu. Martelou até Joana não aguentar e abrir os olhos.
A moça levantou-se da cama com em sobressalto. O quarto estava imerso em total escuridão, mesmo assim, em um ato de falsa bravura, a garota arremessou o travesseiro nas trevas e, gritando, ordenou que a voz se calasse, mas, como sempre, não fora obedecida.
— Já se esqueceu de tudo que te fizerem, Porquinha — A voz dispersa na escuridão do seu ser perguntou. — Acenda a luz e poderemos planejar a melhor forma de dar o troco, o que acha? Que tal colocarmos veneno na bebida deles? E se você furasse o pneu do carro daquele idiota que te fez de palhaça? Talvez você devesse levar uma faca no colégio e matar todos daqui a pouco...
— NÃO, NÃO, NÃO, NÃO!
A estridente gargalhada do “conselheiro” fez chacoalhar o cérebro da pobre prisioneira:
— Melhor ainda: e se você pegasse uma faca, se trancasse no banheiro e cortasse os pulsos? Todos no colégio ficariam sabendo da sua morte. Esse será o castigo deles... o castigo definitivo. Pense só: você poderá vê-los do além, poderá regozijar da imagem deles em depressão, sentindo o eterno fardo da culpa. Tem vingança melhor?
— CALE A BOCA — Joana revidou, golpeando com o punho cerrado, por azar, a parede no ponto exato onde estava o interruptor. — ME DEIXE EM PAZ... me deixe em paz... — a garota esmoreceu até seu grito não passar de uma súplica desconsolada. — Em paz... me deixe em paz... por favor.
A luz iluminou toda a escuridão daquele quarto cor-de-rosa, mas não dissolveu o frio e cheio de calafrios breu do espirito de uma alma flagelada.
— Vamos nos vingar, Porquinha — perguntou a voz. Você precisa se vingar.
Joana queria pronunciar um “não”, mas, sem forças, limitou-se a mirar o espelho à frente; o espelho na porta do guarda-roupa; o espelho que captava a imagem de uma bela jovem de pijama, cabelos cacheados e olhos verdes como esmeraldas, mas devolvia a visão destorcida de uma adolescente que travava uma implacável luta contra a balança, luta contra o próprio corpo, luta contra o veneno destilado por pessoas que a feriam com escárnios, apelidos e piadas difamatórias; o espelho (não apenas aquele, mas todos que Joana tinha o desprazer de mirar), projetava uma adolescente desnuda com curvas salientes, pneuzinhos indesejados e dobrinhas que a refletida não queria ver ali.
Naquela madrugada (após ganhar daqueles jovens peçonhentos, na festa de aniversário da amiga, o apelido de “Porquinha”), Joana encontrou-se mais uma vez frente-a-frente com o monstro, o conselheiro, o sádico algoz na prisão de sua consciência; estava sendo observada por uma cópia desnuda e sem pudor que ria e divertia-se alisando o “próprio” corpo. O reflexo nu levantou o braço direito e com a mão esquerda chacoalhou a gordurinha sob o antebraço, a que mais Joana odiava em si mesma.— Gorda e pelancuda.
Desceu as mãos alisando o corpo e parou na cintura. Baixou o olhar e começou a apalpar e apertar os pneuzinhos.
— Quanto toucinho nós temos, Porquinha. Eles têm razão, você não passa de uma baleia horrorosa... uma baranga.
De tanto mirar o reflexo, Joana baixou a cabeça para olhar em si mesma as gordurinhas que tanto o ser desnudo apalpava, mas a imagem da pele coberta pelo tecido das vestimentas a fez sair daquele “transe” momentâneo. Joana olhou para o reflexo vivo; olhou por longos segundos que pareceram horas. Os olhos de esmeralda brilhavam através do cristalino vidro do espelho. A moça, toda noite em que era incitada a odiar aquelas que dela zombavam, acabava sentindo ainda mais desprezo por aquele que a aconselhava. Mas, de forma desesperadora, odiar algo que tinha seu rosto e suas curvas era como odiar a si mesma. Com o tempo Joana odiou ela mesma mais que tudo!
— Você é fraca, Porquinha — o reflexo se pronunciou, escondeu uma mão atrás das costas e a puxou, trazendo consigo uma afiada lâmina de cozinha. — Eles te odeiam; eles riem de você... — apontou a faca para Joana. — Eles te chamam de baranga e baleia, te pregam peças. Eles te acham covarde, medrosa, incapaz de revidar e fazê-los sentir a mesma dor que te causam todos os dias... eles debocham de você porque você nada faz para revidar. Você é fraca!
Joana sentiu as pernas tremerem e o corpo esfriar. Estava com medo; estava furiosa; estava no limite.
— Não sou fraca! Chega!
O reflexo sorriu.
— Sente essa pontada no coração e esse nó na garganta? Sente essa tristeza? É culpa deles, de todos eles. Ontem você chorou na frente daquelas desgraçadas — o contentamento do conselheiro aumentou quando Joana cerrou os punhos e rangeu os dentes; lagrimas escorriam cristalinas pelos olhos da adolescente, mas na imagem refletida as gotas traçavam rios vermelhos, rios de sangue carmesim. — Eles sabem a dor que te causam. Eles gozam de prazer quando você chora, mostrando sua franqueza. Você é fraca!
— Sou forte! — Respondeu ofegante.
O “libertador” estendeu a faca para Joana:
— Prove que é forte... vingue-se!
Joana, determinada a pôr um fim àquela dor, moveu a mão, aceitando o presente que ela mesma se oferecia. Moveu... lentamente, mas, para a fúria “daquilo”, antes que os dedos tocassem o vidro, piscou e retrocedeu amedrontada. Não queria sucumbir; não queria vingar-se nem daqueles nem de si mesma; só queria viver o restante da sanidade que aquela gente má lhe permitia ter.
— Você... você... você não vai me derrotar... — tartamudeou ofegante e suada.
O “conselheiro” exibiu os dentes brancos enquanto deslizava a lâmina no pulso direito, rasgando profundamente a própria carne. Sangue escorreu em abundância a ponto de respingar no vidro. Ele(a) apontou mais uma vez a arma para garota e pronunciou-se:
— Eu sempre venço...
Joana, assim como muitos outros, era prisioneira em um inferno que queimava dentro de si mesma; um inferno construído de antemão por pessoas desalmadas que viam na zombaria uma forma de varrer para baixo do tapete os próprios problemas. Até o próprio Satanás que a provocava com desejos de sangue fora perfeitamente moldado por aqueles deuses imundos que destruindo a autoestima de uma moça amigável também deixavam na corda bamba uma vida que muito valor tinha ao mundo.
— Você logo irá cair... eu sempre venço, eu sempre venço. Eles sempre derrotam os fracos como você, mas os espólios pertencem a mim... seu sangue é meu despojo e a ruína deles um deleite...
Joana, assim como tantas outras crianças e adolescentes, não precisava de muros para sentir-se longe da luz e afundada nas trevas da morte, Joana precisava apenas de palavras e ofensas (dado a ela em abundância), pois essas eram os alicerces de seu cárcere: a depressão.
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Projeto "Vamos Conversar" (1ª Temporada)
Non-FictionQuais questões te incomodam? Quais ideias podem ser aplaudidas? Por que? Como? Onde? Com quais propósitos? Quem é você? Quem somos nós? Para onde vamos? O que está acontecendo? Somos bilhões de vidas envoltas em perguntas; bilhões de mentes question...