Mini contos

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A esposa.

Já eram Duas horas da madrugada quando o estalido da bofetada ecoou pela casa. Glória caiu sobre o piso, com a mão recobrindo a face e lágrimas escorrendo em cascatas por seus olhos.

— Cadela duma figa — vociferou Irineu, acocorando-se ao lado da fragilizada esposa. — Coisa nojenta e preguiçosa. Qué sair de casa? Vai pra onde? Tua mãe já morreu. Teus irmãos te desprezam porque você não tem porra nenhuma... — Agarrou com brutalidade os cabelos da esposa. — Vai procurar outro macho? De uma puta suja como você não duvido nada. Mas que homem vai querer esse teu rabo fedorento? Você é feia, velha, gorda, porca. Eu te faço um favor te dando de comer. Você não passa de um lixo que não tem nem pra onde ir!

— Eu vou embora — Gritou a esposa que, com medo e envergonhada, sequer abriu os olhos.

— Então você tem outro macho — retorquiu Irineu, levantando-se com a mulher presa pelos cabelos. Moveu o braço com violência, arremessando-a contra o sofá que ficava no centro do cômodo.

O móvel sentiu o baque do corpo da esposa de Irineu e virou-se para trás, levando consigo mais uma vítima da realidade de nossa sociedade.

— Diga quem é o maldito — ordenou o ébrio, marchando até a esposa caída. — Eu mato você e capo o desgraçado filho duma quenga! Qual nome dele?!

— Ninguém! — Respondeu em meio a um gemido.

— Tem macho nisso tudo. Eu sei que tem! Me diz ou eu rasgo a tua cara feia, cadela suja!

O medo aos poucos tornou-se pânico:

—Eu juro que não tem homem. Eu juro — soluçou.

Irineu assentiu e ordenou que Glória lhe apanhasse uma cerveja, mas não antes de adverti-la:

— Cadela, escute bem: se um dia cê procurar a polícia, eles podem até me prender ou fazer alguma medida protetiva ou sei lá oque, mas eu dou um jeito de te matar — apontou para ela o estilete. — Pode marcar minhas palavras... te mato devagar... bem devagar!

Glória baixou a cabeça e caminhou até a geladeira. Apanhou uma latinha de cerveja. Afagou a bochecha que ainda queimava e deixou mais algumas lágrimas caírem. Estava cansada daquela vida. Se é que aquela realidade podia ser chamada de vida: A face ainda queimava, os pulsos latejavam e o escalpo chegava latejar, mas a pior das dores estava em sua alma. Cinco anos com aquele crápula, sendo humilhada e desprezada. Ela queria sair daquele brejo satânico, mas para onde quer que olhe só via pilhas de ossos e rios de sangue. Estava sozinha no inferno. De fato, não tinha ninguém a quem recorrer. Só havia uma saída para aquele pesadelo.

Glória apalpou a superfície fria acima da geladeira até encontrar um pequeno envelope de plástico que continha poucas 15 gramas de um pó negro como pólvora.
Ali estava a chance da libertação. Abriu a latinha de cerveja e o envelope transparente. Bastava misturar aquelas duas substâncias e daria fim a toda maldade.

Talvez acabasse apodrecendo dentro de uma cela de cadeia, pensou Glória, mas o maior dos medos dela não era as bofetadas ou as surras de Sábado para Domingo, mas desapontar a memória de sua mãe.

O que diria dona Eulália se soubesse que a filha matou ao esposo, esse pergunta era a maior de todas suas algemas morais.

Pode soar estranho para quem vê Glória, agora, toda submissa e amedrontada, mas, quando tudo começou, alguns meses após o casamento, Glória sentiu asco, revolta, repúdio pelo marido. O odiou com todas as forças. Chegou até a deixar o lar. Considerava o relacionamento com aquele homem uma escravidão insuportável; as bofetadas eram as amarras do sofrimento; e as os ciúmes de Irineu o açoite. Naquela época a mãe ainda estava viva, e foi nos braços dela que a moça buscou abrigo. Voltou ao primeiro ninho jurando nunca mais regressar ao inferno da casa de Irineu...

Projeto "Vamos Conversar" (1ª Temporada)Onde histórias criam vida. Descubra agora