Capítulo 21

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Ainda não havia amanhecido. Estava escuro, na hora mais fria da madrugada, onde todos dormiam profundamente. Foi neste momento que Arão e Moisés saíram de Gósen e atravessaram a área comercial e o centro de Avaris, totalmente vazios. Passaram na frente do palácio, onde um grupo de soldados fazia a guarda. Eles avistaram a dupla passar, sem olhar em sua direção, e ficaram amedrontados.

— Como têm coragem de caminhar pelas ruas na escuridão sem a proteção de Rá? — um deles comentou.

— Não sei... — respondeu outro guarda. — Só sei que eles irão liberar a tal maldição...

— Não acredito que irão conseguir — falou o primeiro soldado. — O Soberano ainda está na presença de Heqet, agradando-a com oferendas e orações. A deusa é muito poderosa e não vai se deixar desafiar por um deus invisível, que ninguém sabe o nome, nem o rosto, e se diz dominar todos os elementos.

Os outros soldados riram. E Moisés e Arão já não estavam mais à vista deles. Seguiam o caminho em direção ao Nilo. Circundaram por uma rua próxima ao palácio e seguiram em direção à margem direita de um dos braços do Delta. As ruas eram iluminadas por tochas deixadas à porta de casas e de templos, para evitar que as sombras entrassem pelas frestas, mantendo longe o mal que reside na escuridão. Moisés abanou a cabeça. Quantas vezes ele mesmo acendeu algumas tochas como aquelas na porta de seus aposentos quando vivia no palácio, para afugentar o mal? Quantas vezes antes de dormir sentiu medo de Rá não vencer a serpente Apopi, e do mundo mergulhar numa terrível destruição?

Até conhecer a verdade sobre sua própria vida e ir parar em Midiã. Conservara os ensinamentos de sua mãe Yoquebed e de seu pai, o patriarca de Levi, Anram, e até os reproduzira em sua casa, em Midiã, quando circuncidou seu filho mais velho, Gerson. Contou as histórias de Abraham, Isaac e Yacob aos seus filhos, mas não passavam disso: histórias. Estava tão mergulhado na cultura egípcia e, depois, midianita, que nem mesmo cogitou que as histórias de seus antepassados seriam mais do que histórias.

Quando Zípora, sua esposa, não permitiu que ele circuncidasse seu filho mais novo, Eleazar, ele a atendeu, para deixá-la mais tranquila. E este foi seu erro. Não deveria ter aberto mão disso, por isso o Anjo de Deus o quis punir no caminho para o Egito. Felizmente Zípora voltou atrás em sua decisão, salvando-lhe a vida.

Suspirou tristemente. Sentia falta de sua esposa e de seus filhos. Gostava muito deles. Sua vida em família era alegre, cheia de momentos divertidos e difíceis ao mesmo tempo. Algumas recordações lhe vieram à mente, como o dia em que salvou Zípora e suas irmãs de alguns pastores que as impediram de dar água aos rebanhos. O fato de ser um general egípcio os afugentou antes mesmo que ele fizesse qualquer coisa, e isso deixou as mulheres bastante impressionadas, inclusive sua futura esposa, embora ela não o deixasse transparecer. Lembrou-se de quando seu filho mais velho aprendeu a andar e quando o levou para pastorear o rebanho do avô pela primeira vez. Ele detestou, mas depois acabou aprendendo a controlar as ovelhas, sentindo-se orgulhoso de si mesmo.

Mas a lembrança mais importante que guardava foi quando, finalmente, as histórias sobre o Deus de seus antepassados deixaram de ser histórias, e passaram a ser verdades incontestáveis. Foi quando deixou de reproduzir em sua mente o que lhe foi contato e passou a enxergar.

E enxergou uma sarça que ardia em chamas, mas permanecia verde, como se as chamas não a tocassem de verdade. A lembrança o deixou espantado como naquele dia. Ainda era difícil se acostumar. Ele tentou se aproximar, mas foi impedido por uma voz que falava diretamente da árvore. Sempre que a voz falava, as chamas brilhavam mais fortes e vibravam. Ele via línguas de fogo lambendo os galhos e as folhas, mas elas não mudavam de cor, nem perdiam o verde brilhante que tinham.

A Princesa de CuxeOnde histórias criam vida. Descubra agora