parte 9

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— Sabe o que você devia fazer, filha? — ouço a voz rouca da minha mãe ao meu lado, enquanto finjo me interessar pelas roupas no cabideiro à nossa frente

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— Sabe o que você devia fazer, filha? — ouço a voz rouca da minha mãe ao meu lado, enquanto finjo me interessar pelas roupas no cabideiro à nossa frente.

— O que? — me esforço pra não revirar os olhos.

— Curso de inglês. — ela me olha. — Seu irmão fazia.

— Ele tem um pênis. Quer que eu faça um transplante? — brinco, sem pensar.

— Sem brincadeiras, Cíntia. Você já tem dezesseis anos, e só estuda. Tem que se preparar pro futuro. — ela cruza os braços.

— Eu não sei o que quero do meu futuro. — minto.

— Só vai descobrir se aproveitar todas as oportunidades que vierem. — ela conclui, se afastando.

Tentei me entreter de todos os jeitos nesse shopping. Minha mãe me arrastou pra um monte de lojas, mas não me deixou escolher uma peça de roupa que fosse do meu agrado. Por fim, não peguei nada pra mim. Já ela, gastou o cartão do marido comprando coisas que provavelmente nem vai usar.

Como se não bastasse ter meu gosto pra roupa sendo humilhado pela minha própria mãe enquanto ela compra suas grifes, sem querer eu esbarro em alguém conhecido na saída da última loja.

— Nossa, desculpa! — exclamo, ainda sem olhar pro rosto da pessoa.

— Tudo bem, tudo bem! — o garoto ri, levantando seus braços com o susto. — Cíntia, é você?

Droga. É o Lucas. Ele é do segundo ano, mas nos aproximamos durante as provas de recuperação do ano passado. Faz tempo que não nos falamos, mas não é de propósito. Pelo pouco que eu me lembro dele, tenho como dizer que é bem legal.

— Lucas! — sorrio, sentindo meu coração acelerar e torcendo pra que eu não fale besteira. — Que coincidência. — olho vagamente pra minha mãe, que está à uns dois metros de distância da gente.

— Pois é. — ele sorri, divertido. — Como você tá?

— ...Indo. — digo, sem pensar.

Ele não me conhece direito. Eu poderia facilmente mentir, dizendo que to ótima. Mais um ponto pra vida, enquanto você continua com zero, Cíntia.

— Tá sozinha? — ele estreita os olhos, o que me faz lembrar de Rafael.

— To. — digo rapidamente.

— Legal. — ele ri, sem graça. — Bom, então a gente se vê na escola. — Lucas se afasta, e me dá uma piscadinha antes de me dar as costas.

Fico observando ele andar do seu jeito desleixado, sem pensar em muita coisa. Quem vê a gente assim, nem imagina as piadas que fizemos juntos no meio de toda a galera que só queria recuperar suas notas.

— Cíntia! — minha mãe grunhe, ainda em sua posição de "eu não conheço essa garota".

Me viro pra ela rapidamente, e então tornamos a andar. Dessa vez, finalmente vamos embora. Vocês gostam de shoppings? Eu não sei o que dizer sobre. Nunca foi muito minha praia.

Voltar pra casa em uma noite chuvosa é tão tranquilo pra mim. Ao contrário da minha mãe, que ficou reclamando do clima o percurso inteiro, eu só relaxei no banco do passageiro e cochilei. Ou pelo menos tentei cochilar.

— Leva as minhas sacolas lá pra cima, enquanto eu coloco o carro na garagem. — ela me entrega suas sacolas de qualquer jeito, assim que entramos na sala.

Vejo umas pastas de Luís em cima da mesinha do sofá, então concluo que ele já chegou. Como sempre fora da minha vista, penso. Subo as escadas e entro no corredor do andar de cima.

Bato na primeira porta do corredor – que é a do quarto da minha mãe e meu padrasto – e em poucos segundos, ouço a voz grossa de Luís dizer: entre.

— Onde estava? — ele franze a testa, enquanto folga sua gravata em frente ao espelho.

— Fui com a minha mãe no shopping. — sussurro, e deixo as sacolas bagunçadas em cima da gigante cama de casal.

Luís parece estressado. Ele move seu pulso, enquanto solta uns gemidos de dor. Paro pra reparar nisso, mas quando me dou conta do que estou fazendo, me retiro do quarto o mais rápido possível.

Fecho a porta, um pouco desnorteada. Ando pelo corredor, e como numa intuição, não me contenho e bato na porta do quarto de Rafael. Não ouço nada, mas ainda sim insisto em chamar por ele.

— Rafael? — cochicho, abrindo sua porta devagar.

Já me preparava pra ouvir suas reclamações à respeito da minha intromissão, até que reparo no garoto sentado na beira da cama, passando um pano com gelo no rosto.

— Tá fazendo o que aqui? — ouço sua voz falhar, enquanto ele não me encara.

— Nem eu sei. — gaguejo, fechando a porta. — O que você tem? — junto as sobrancelhas.

— Nada, sai. — sua voz falha novamente, e ele vira seu rosto para a parede.

— Eu não vou sair. — dou de ombros, e sem pensar duas vezes me sento ao seu lado na cama. — Rafael...

— O que?! — ele exclama, e eu não deixo de notar sua voz sensibilizar, por conta do choro.

Meu coração se parte com a cena. Nunca vi ele chorar, mas só de imaginar eu ficava triste. Agora eu to presenciando isso ao vivo e a cores, e não tenho a menor ideia do que fazer. O que aconteceu?

Eu seguro sua mão – a qual tem o pano com gelo – delicadamente, e afasto-a de seu rosto. Aos poucos, ele me olha nos olhos. Suas lágrimas caem rapidamente, e suas sobrancelhas se juntam, como se estivesse fazendo um esforço para evitar uma dor.

No canto de sua sobrancelha direita, há uma ferida. Uma ferida bem grande. E sangra. Sangra muito.

Eu não acredito que o Luís simplesmente bateu no próprio filho de dezoito anos. Seja lá qual for o motivo, nada justifica isso. NADA.

Sinto meus olhos queimarem, e antes que as minhas lágrimas também caíssem, eu abraço Rafael com todas as minhas forças. Esqueço todas as coisas que ele já me disse, e até mesmo o que sua falta de cumplicidade fez com meus sonhos.

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