44. As Pazes

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No dia seguinte, acordou com Harta a olhar para ela. O olhar dele era sereno, mas triste.

- Porque voltaste?

- Eu nunca vos deixei. Só quis ajudar... Pensei que conseguia arranjar trabalho e casa e deixar de ser um fardo... mas quando cheguei vi que nem um e-mail para a minha irmã consegui enviar... - as lágrimas fugiram-lhe ao demonstrar a sua incapacidade.

- Nunca foste um fardo para nós! - Harta abraçou-a. Não disse mais nada, não chorou, não reclamou. Apenas ficou assim abraçado o que pareceu a Bela uma eternidade.

Ela gostou do seu gesto e calor, mas havia algo mais profundo naquele abraço, naquele silêncio. Algo que a fazia querer fugir, mas que ao mesmo tempo a prendia.

- Hum! Hum! - Samir também estava acordado na porta da sala a olhar para eles com um ar tímido.

Harta desenlaçou-se com lentidão como se fosse natural estar a abraçar a namorada de manhã na sala da casa dos pais. Por vezes, parecia a Bela que se ele vivesse em Portugal daria-se muito bem. Falou com o pai em bahasa indonésio e perguntava a Bela sobre comida. Era hora de tomar o pequeno almoço e a comida de Batari enfeitiçava pelo seu forte cheiro.

Bela tinha dormido no sofá que tinham comprado em segunda mão e que se abria numa cama de casal. Quando Harta e Bela estavam a fazer a cama, Harta perguntou onde ela queria dormir. Bela apontou para o sofá e disse para ele dormir no colchão. Ele recusou a ideia, disse que até agora tinham sempre partilhado a cama sem que ele lhe faltasse ao respeito. Porque não podiam continuar a fazê-lo? Bela concordou com ele. No entanto, havia algo inseguro dentro de si. Não sabia se não confiava nele ou nela. No entanto, a noite correu bem até porque Harta ainda estava magoado com ela.

Depois de tomarem o pequeno almoço, cada um partiu para o seu trabalho. Só Batari ficou a arrumar o pequeno apartamento ainda cheio de caixas por esvaziar.

O dia passou a correr. Mais uma vez a família se reuniu à noite ao jantar. Samir e Batari ao verem que Bela voltou para ficar, estavam mais contentes e esforçavam-se para serem ainda mais simpáticos. Apesar de ela ter sido apenas um gasto, Bela conseguia ver que eles gostavam de a ter ali.

Depois de abrirem o sofá e fazer as camas, tanto Harta como Bela não tinham sono. Sem sono e sem nada mais para fazer sentaram-se na cama. Não tinham comprado televisão e a que tinham, venderam para ter mais dinheiro para a renda da casa. Não tinham muito dinheiro na altura, a mudança era muito recente. Quando recebessem os seus ordenados, não ia ficar muito melhor. Apenas tinham um telemóvel simples que servia Harta e Samir para receberem as chamadas de trabalhos. Bela esperava que quando recebesse conseguir comprar um.

Se Bela ainda morasse em Portugal não conseguia viver sem nada disso. E tinha que ser um telemóvel bom! Não poderia ser uma coisa barata que não consegue com nada e nem tem duplo cartão. As coisas baratas nunca duravam muito.

No entanto, a Bela que morou em Portugal não vivia ali em Padang. Padang era como uma outra vida, por vezes, era terrível outras linda. As coisas eram mais vivas, mas ao mesmo tempo desligadas daquilo que ela julgou ser a vida normal.

Estava a falar com Harta ambos sentados apoiados com as mãos no sofá, próximas, mas sem se tocar. Os olhos sorriam, falavam em português porque Harta queria praticar, misturava com inglês e bahasa indonésio mas deixava-se envolver pela língua.

Harta era um mundo que Bela sabia que não iria compreender nunca. Talvez, fosse isso que o tornava tão fascinante. Bela imaginava que ela deveria ser o mesmo para ele. Por isso, aproveitavam aquelas conversas e as explicações dos seus pensamentos e culturas para fortalecer os seus laços.

Harta explicou que depois de ela ir para Padang, eles tentaram recuperar tudo o que podiam vender para os ajudar a sobreviver. Não tinham seguro. Todos os cultivos tinham sido dizimados. As contas aumentavam cada vez mais. Os vizinhos, aflitos como eles, venderam os seus terrenos à produção de óleo de palma. A Global pagava muito melhor do que qualquer outro comprador na zona, muito mais rápido e ainda oferecia emprego. Os proprietários daqueles pequenos terrenos saíam dali para irem trabalhar para a produção.

Apesar de ser algo que os deixava muito tristes, viram que não tinham outra escolha senão vender como os seus vizinhos. No entanto, ficaram com boas poupanças e conseguiram recusar o emprego na Global. Tanto Samir como Batari recusavam trabalhar na empresa que destruiu o seu sonho. Para eles, só a Global poderia ser a responsável pelo incêndio, mesmo desconhecendo as investigações de Bela.

Bela contou como tinha sido contratada pelo hotel para agendar as reservas porque sabia fluentemente inglês e português. Era um trabalho administrativo, bom para Bela que não tinha forças para trabalhos pesados. A única coisa que tinha pena era de não conseguir aceder a mais do que o programa de reservas.

Harta ficou feliz com a sorte de Bela, mas insistiu que ela deveria ter ficado com eles. No entanto, sorriu ao pensar que ela estava ali com eles novamente. Ainda estava mais feliz porque conseguiu um novo emprego e ela tinha-o apresentado como namorado dela.

- Sempre tive medo que um dia fosses partir como fizeste... mas nunca esperei que quisesses voltar. Talvez o voltes a fazer... - Bela ao ver a sua expressão, lembrou-se de um cãozinho abandonado. Sentiu um aperto no coração.

- Posso partir, mas voltarei sempre - assegurou.

- Sim? - Harta colocou uma mão no peito - Porque voltas?

- Esta não é a minha família?

- É - ao responder Harta apertou-lhe a mão.

- As famílias são assim por muito que nos afastemos nunca é para sempre. Além disso, ainda tenho a minha irmã a pensar que estou morta - Bela enrugou a testa e esfregou os olhos - tenho de arranjar uma forma de falar com ela...

- Claro - o aperto ficou mais forte - eu ajudo-te.

Bela olhou para Harta. Os olhos dele cintilavam como estrelas no céu. Ele aproximou a sua cara da dela e tocou suavemente com a ponta do nariz na sua face. Bela arrepiou-se, mas deixou-o estar. O toque tornou-se uma suave carícia. A carícia era dada não só com o nariz, mas com os lábios e a barba a picar no seu rosto. Ela inclinou a face para o beijar, mas ele subiu e beijou-lhe a testa. Acariciou-lhe a cara com a mão. Deu-lhe um beijo suave na bochecha e disse que era melhor irem dormir.

Bela suspirou. Sentiu outro arrepio. O coração batia e sentia uma sensação quente a envolvê-la. Como um caminhante desejoso de água no calor agradável da primavera. Olhou para Harta, mordeu o lábio inferior e disse boa noite. Tinha muitas dúvidas que conseguisse dormir. O calor dele e a maneira como ele a tratava desconcertavam-na, mexiam com ela, mas ela não conseguia resistir.

Ele adormeceu rapidamente. Não demorou nem cinco minutos a dormir. Dava para perceber pela sua respiração ficar mais calma e suave, quase inaudível. Bela já sentia falta de as ouvir. Ao observá-lo, adormeceu.

Investigação na IndonésiaOnde histórias criam vida. Descubra agora