Murilo e Miloch já iam interromper aquele idílio quando a viram se afastar do chorão em direção da casa. Sorriram confiantes; ela era uma mulher fiel ao passado e ao presente, uma mulher que não se deixaria seduzir pelo futuro.
E para não serem surpreendidos naquela espia ridícula, se afastaram da porta da varanda, cada um para um lado. Não havia mais compromisso algum entre eles, no entanto, havia agora um pacto implícito onde palavras eram mais que desnecessárias, eram indesejáveis.
No jardim, sob o chorão, Ruy viu a maior onda de sua vida passar sem que conseguisse surfa-la, e um desgosto manifesto o solapou. O que havia de ruim no mundo que devia ser um paraíso era a morte de qualquer coisa, e aquela tesão recolhida se assemelhava ao fim.
Ainda ficou algum tempo por ali, para reencontrar o despojado aventureiro, o arrojado desafiador, e não conseguiu sentir qualquer sossego. Estava inconformado!
Procurou pela irmã, que dançava com um homem de barba branca. Fez-lhe um sinal, e aguardou que parasse de dançar.
- O que foi? - perguntou Margot, ofegante.
- Quero saber quem é aquela mulher.
Margot olhou na direção que ele apontava e avistou Salamandra.
- Nunca a vi antes... - E encarando o irmão, quis saber por que estava interessado nela.
- Porque estou apaixonado por ela.
- Se apaixonou assim, de repente, só porque ela acredita em sereias? Ah, Ruy, para de querer se emocionar em terra firme, não faz seu estilo.
- Margot, nunca falei tão serio na minha vida, estou apaixonado por aquela mulher.
- Mas e a Cintia?
- Que Cintia?
Só então Margot percebeu que seus planos haviam fracassado mais uma vez. E suspirou consternada, voltando a atenção para a mulher que parecia brilhar mais que ela, e por isso disse:
- Não sabia que você andava surfando marolas...
Margot viu Theo esperando por ela no centro do salão e concluiu que não podia abandonar seus sonhos por uma tesão momentânea do irmão; certamente ele se resolveria, refazendo-se de uma forma ou de outra.
- Se vira, meu irmão. Não sei quem ela é, mas conheci Papai Noel e preciso garantir alguns presentes. - e piscando o olho para o irmão, voltou para os braços de Theo.
- Pensei que tivesse me abandonado. - disse Theo, rindo enquanto rodopiava no salão.
Theo não se continha por mais nada e por mais ninguém, era uma pessoa muito bem resolvida, sem qualquer duvida acerca da vida e de si mesmo. Mas gostava de dividir seus prazeres e alegrias, suas certezas, ainda que durassem um minuto. Mas era curioso, talvez seu ponto fraco, e por isso, perguntou:
- O que ele queria?
- Conhecer a sereia... Você sabe quem ela é?
A simples menção a Salamandra avivou o folguedo de Theo. Abandonou a pista e procurou por um garçom; precisava tomar algo quente e forte para esfriar a temperatura.
Quem era aquela mulher que o incendiava? Por que ela tinha o poder de fazer isso? Nunca gostara dela! Ela sempre o colocara em xeque-mate, pervertendo seu aspecto bom. E vira e meche ela ressurgia como uma fênix, despertando nele um grande mal estar, talvez até uma especie de paixão. Maldição!
Aquela implicância começara num dia, num hotel exclusivo num local remoto do Japão. Aquele não era exatamente um hotel, antes fora uma tradicional casa de uma família japonesa, construída em cima de um pequeno penhasco que se debruçava sobre um riacho de águas cristalinas.
Quando os três filhos do casal partiram, os proprietários, sentindo-se solitários naquele recôndito, decidiram alugar os três quartos e alimentar seus hospedes com iguarias pescadas e colhidas ali mesmo e preparadas por eles mesmos.
Apesar de pouco conhecido, da distancia e do difícil acesso, as acomodações eram disputadas a preço de ouro por hospedes exigentes e requintados. A vida mundana não era valorizada ali, o que valia era a riqueza da natureza, as tradicionais acomodações japonesas, e o menu especialmente preparado e servido em louças centenárias.
Desde que conhecera aquele casal singular e sua hospedagem exclusiva que Murilo só ia la em ocasiões especiais para dividir aquele oásis com pessoas de excepcional valor. E o chamara com a promessa de apresentar-lhe um tesouro, porque Theo era um mestre em avaliações e queria sua opinião sobre a obra de arte que encontrara.
- Onde está a obra de arte? - quis saber Theo, não contendo a curiosidade.
- Ela ja vai descer.
Foi então que entendeu que o amigo se referia a uma mulher e confiava nele o sacramento da sua mais nova paixão. Mas Murilo ja tinha o encaixe perfeito, Jalou!
Mas haviam homens que nunca estavam satisfeitos, e o amigo era um deles. E podia entende-lo porquê ele também era um eterno inconformado.
Suas elucubrações cessaram quando viu uma mulher se aproximar lentamente, talvez para ter tempo de avaliar a cena e analisar o novo personagem. Viu que seus olhos brilhavam como esmeraldas, repletos de mistérios, despertando a imaginação daqueles que neles mergulhavam. E então entendeu porque o amigo se metera naquela cilada; qualquer homem seria seduzido por aquela criatura diabólica! E discretamente disfarçou o volume sob a calça concluindo que não gostava dela pelo desconforto que lhe causava. Mas não era só esse o motivo de sua antipatia...
Mergulhado na sua viagem solitária, Theo não percebeu que Margot oferecia-lhe um drinque após outro. É que ela, em seus poucos anos de vida, aprendera a duras penas que os homens só desabafavam quando estavam embriagados. Não queria nenhuma confissão para si, não gostava delas, mas Ruy queria saber quem ela era e talvez Theo pudesse lhe revelar algo útil ao irmão.
Brindou algumas vezes com Theo, acariciando sua barba, beijando de leve sua nuca, ate sentir a fera resfolegar e descansar. Então, se sentindo segura voltou a perguntar:
- Você a conhece?
E o experiente Theo, que conhecia muito do mundo e das pessoas, disse:
- Ela é uma mulher sem eira nem beira.
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Salamandra
RomanceEssa é uma estória permeada de um realismo fantástico, onde tudo pode acontecer. Poderia ser a história de sua vida, ou quase.