Capítulo 95

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        Causou-lhe mais estranheza o ineditismo da idéia da maternidade do que a proposta em si. E duvidava que pudesse gerar um filho, apesar do seu milagroso rejuvenescimento. Na analise que fazia de si mesma nunca explorara esse aspecto de ser mulher e apenas se-lo não refletia o que realmente era. Muitas pessoas tinham uma ideia errada sobre si mesmas, mas ela não, se conhecia bem, entendia seus sentimentos e desejos, apesar de não saber quem era.
         Seus apetites desejosos eram muito fortes e eram válidos, porquê nunca foram a finalidade única de sua existência. Apesar de possuir uma sensualidade intensa, que a levava a amar a vida, cultivava a moderação dos quereres, o egoísmo básico que podia atrapalhar sua suposta missão. Amava profundamente as coisas e pessoas belas, que para si tinham um valor imensurável. Por isso, talvez, se apaixonara pelo estilo de Murilo e as situações tão agradáveis que ele criava. No entanto, apesar de sentir prazer em seduzir as pessoas, respeitava todas que cruzavam seu caminho, e apesar de ver tudo e todos sob seu ponto de vista, não achava justo ignorar os dos outros.
Por isso, tentava ser afetuosa, tolerante, moderando o poder que sabia possuir, porquê dentre as pessoas comuns não haviam vencidos e vencedores.
         Sabia possuir um guerreiro interior, que alimentava seu espirito de força para desvendar a verdade, para travar a sua batalha pelo bem, e ele tinha características bem distintas porquê sabia quando era ele e quando era ela. Ele era seu mestre interior, destinado a ensinar-lhe como o mundo era para que ela pudesse difundir a verdade sem sucumbir ao seu diabinho interior. Mas, só se podia ensinar quando se aprendia, e aprender requeria esforço, disciplina, maturidade. Com o tempo, tal desvelo desabrochava em consciência e esta transformava o aprendiz em mestre daquilo que havia entendido. E era justamente nesse aprendizado que se encontrava a felicidade e o sentido para o vazio existencial.
         Ela vivia em busca de descobrir o significado de sua existência desde aquele dia que o andarilho se ajoelhara aos seus pés antes de entregar-lhe papeis quase em frangalhos, que o bispo prontamente arrancou-lhe das mãos. Porque, até então, desconhecia que possuía uma história evolutiva. Foi a partir dali que se percebeu humana, e iniciou a reflexão filosófica pela busca do significado de suas experiências e da construção de narrativas pessoais que justificassem suas crenças e valores.
        Seja por amor ou pela dor em algum momento da vida se era chamado a evoluir, mas a troca que Adriano lhe propusera não compreendeu e nem gostou. Ele acreditava que precisava daquilo para sua evolução espiritual e tudo se resumia nisso, na salvação da sua alma. No entanto, não conseguia enxergar crescimento interior nem o despertar de uma consciência mais evoluída nele, e uma dúvida se insinuou no seu espírito: seria essa então a sua chance e não a dele, o derradeiro gesto que teria que fazer para, finalmente, obter a pedra filosofal?
        Viu Adriano parado à sua frente, aguardando sua resposta. Ele suava profusamente, e tinha o rosto estranhamente lívido.
         - Quero os pergaminhos... - Disse, como resposta.
         - Serão seus quando você aceitar meu convite.
         Ela se levantou e se dirigiu para a pesada porta de mogno.
         - Salamandra, não tenho tempo a perder. Vou te mandar instruções.
         Ela ouviu e fechou a porta atrás de si.
         Saiu andando a ermo, desejando que a noite que começava a cobrir a cidade pudesse apagar um estranho sentimento que se apossava dela.
         Precisava entender que emoção era aquela e por isso entrou num bar e sentou-se à uma mesa de onde pudesse observar o vai e vem dos transeuntes.
         Nunca bebia, mas precisava abstrair para ter as idéias clareadas, por isso pediu um drinque. Pensou que a vida e as pessoas davam sinais o tempo todo, e só se surpreendia quem estivesse distraído. E se perguntou por onde sua atenção andara que não havia percebido as intenções de Adriano. O que estava acontecendo com ela, com sua intuição infalível? Lembrou-se da redoma invisível que um dia cobrira a cidade, como ela, também a sua proteção parecia haver desaparecido.
         Então, tudo não passava de um fenômeno físico? Era nisso que sua vida se resumia, em ler os pergaminhos, desvendar sua natureza para, então, poder se libertar do castigo de sobreviver a todos e em troca deste tesouro ser a mãe do filho de um bispo? Engoliu de uma só vez o drinque.
         Interesses distintos brigavam dentro dela e se encontrava entre a cruz e a espada. Fora convocada para ajudar na solução dele, mas para resolver um problema teria que criar outro, o problema dela. Tentava avaliar as consequências de qualquer das decisões que tomasse, e se via num beco sem saída, por isso pediu outro drinque, agora duplo.
         Subitamente lembrou-se do celular desligado e de Miloch; haviam várias ligações dele não aceitas. Um outro dilema se somou ao anterior; o que dizer das ultimas 48 horas sem faltar com a verdade. Além das tentativas de Miloch, padre Renzo também tentara falar com ela. Achou melhor enfrentar o cordeiro de Deus antes do embate com o filho Dele.

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