Capítulo 5

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       Nas primeiras horas da manhã Salamandra deixou o apartamento e Miloch, dormindo.
        Na véspera tiveram um dia e uma noite maravilhosos. Restabeleceram a normalidade e a rotina agradável que permeavam suas vidas juntos. Ao longo do dia beberam cerveja e riram muito, e a noite jantaram num restaurante japonês e beberam saquê. Depois foram dançar, horas com os corpos se roçando maliciosamente, horas rodopiando pelo salão como se fossem caleidoscópios. Já em casa abriram uma garrafa de vinho e terminaram a noite no chão frio da varanda.
        Não queria apagar as lembranças recentes e nem preocupá-lo, por isso saía sem avisá-lo. E pretendia voltar para casa dali a pouco.
        Dias antes recebera um telefonema do padre Renzo pedindo que fosse ao encontro do bispo Adriano o quanto antes. Mas só agora, com Miloch restabelecido se sentia confortável para atender ao apelo do velho amigo.
        Ela atravessou o corredor comprido iluminado pela luz do sol que entrava pelos amplos janelões, com os olhos verdes esmeralda plantados no chão, vendo sem ver as lajotas gastas do piso. Voltava ali tantos anos depois que não conseguia definir o que sentia, se era medo, curiosidade ou vergonha e percebeu, afinal, que era melancolia.
       Parou em frente a porta de madeira e antes de tocar a maçaneta para abri-la sentiu uma súbita angústia, uma grande vontade de sair correndo dali. A porta e a maçaneta eram as mesmas de anos atrás, mas ela não era a mulher de antigamente. Tudo mudara tanto desde então! Tinha uma nova vida na mesma existência! Era isso mesmo, era uma nova pessoa sem ter morrido e reencarnado! Mas talvez ninguém entendesse isso, nem mesmo ele, o seu anfitrião.
        Lembrou-se do dia distante em que se soltando da corda amarrada ao seu tornozelo esquerdo saiu correndo morro abaixo, completamente despida, em direção da igreja onde o padre Renzo rezava a missa das 18 horas. Não fazia o que fazia de forma pensada, mas levada por uma força de instinto, imperiosa e incontrolável.
        E adentrou na nave da igreja como um vento furioso que arrastava consigo o que encontrava pela frente, rindo alto, zombeteira, provocando a todos com imprecauções e ameaças incompreensíveis.
        Renzo, refeito da surpresa, correu para ela cobrindo-a com sua capa cerimonial e, tampando lhe a boca com uma das mãos, tentou abafar o vendaval inesperado. Então ela, reunindo todas as forças de seu ser o empurrou e, escapando daquela garra pretensiosa, saiu correndo da igreja seguida de perto pelo povo já recuperado do susto.
        Na nave silenciosa a capa do padre, única testemunha daquela cena assombrosa, jazia pisoteada no chão frio e indiferente à passagem do tempo.
        Correu pelas ruas da cidade seguida de perto por aquelas pessoas enfurecidas com os seus desatinos, com suas pragas rogadas.
        No trajeto, mais e mais pessoas se juntaram àquele cortejo sinistro, muitos com pedras nas mãos, outros com pedaços de pau; precisavam se livrar daquele ser abjeto!
        A sua figura encarquilhada subiu correndo o morro, de volta para o casebre onde vivia como um bicho fazia muitos anos, seguida agora por uma pequena multidão exaltada que gritava:
        - Morte! Morte! Morte!
        Então um cheiro de gasolina penetrou em suas narinas e viu um clarão iluminar seu mundo miserável, e agradeceu a Deus por, afinal, libertá-la daquele suplício que parecia durar fazia séculos.
         Sacudiu a cabeça para dissipar as tristes lembranças, meteu a mão na maçaneta e abriu a porta.

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