Capítulo 55

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Susan levantou-se do piano sob aplausos. Agradeceu e se misturou aos convidados do tio. Margot, desculpando-se com Theo, afastou-se para procurar pelo irmão e foi encontrá-lo na varanda que se abria para um jardim japonês.
        Ruy admirava o céu deitado numa espreguiçadeira, lembrando de outros céus tão mais estrelados e tão mais baixos que acreditava que poderia tocá-los se quisesse.
- Vamos, quero te apresentar alguém muito especial! – disse Margot, puxando o irmão.
Ruy sorriu com infinita ternura e pacientemente levantou-se e acompanhou a irmã. Abandonar o sossego do recolhimento no jardim contrariava sua vontade, mas não morreria por renunciar a si mesmo para agradar a sua irmãzinha tão tresloucada.
Margot foi abrindo espaço entre os outros convidados, puxando Ruy pela mão. Quando finalmente conseguiu alcançar Susan, disse, com um sorriso triunfante:
- Ruy, esta é minha amiga Susan, uma pianista da nova era! – E se virando para a amiga, disse:
- Susan, meu irmão, Netuno reencarnado! E agora que já se conhecem, peço licença, pois estava tratando de negócios e preciso retomar às negociações.
Ruy e Susan se viram sozinhos
e constrangidos tentaram iniciar uma conversa, mas sem muito sucesso. E para alívio de ambos, Jalou, próxima deles, quebrou o silêncio, dizendo:
- Eis a mulher que acredita em sereias!
Jalou mal conseguia disfarçar a inveja e o despeito. Ela não estava na lista de convidados! Viu Murilo empalidecer, e a raiva, misturada ao ciúmes, cegou-a. E acabou por desferir aquela flecha de ódio contra Salamandra.
A provocação maldosa atraiu a atenção de Ruy e de outros convidados que voltaram seus olhos para o rosto aparentemente imperturbável da mulher com esmeraldas. A maldade contida naquelas palavras não passara desapercebida, e o clima ficou tenso. Ignorando Jalou, Salamandra deu-lhe as costas e começou a se afastar calmamente.
Murilo sentiu o sangue congelar nas veias; conhecia muito bem as duas mulheres e por isso sabia de antemão que Salamandra jamais reagiria a um ataque, atacando, e que Jalou seria capaz de ofensas piores se fosse ignorada. Viu Theo do outro lado do salão aconselhando-o a não tomar partido naquele duelo sangrento com um gesto negativo de cabeça. Mas sua intuição lhe dizia que perderia as duas se fugisse do confronto. Então avaliou rapidamente as consequências do que faria e já ia se manifestar quando uma voz quebrou o silêncio:
- Eu também vi uma sereia!
Jalou fulminou Ruy com os olhos, mas se deteve aí, nessa manifestação de desagrado. Já, Theo, do outro lado da sala, respirou aliviado, mais uma vez o amigo fora salvo pelo gongo. Mas não era sempre assim na vida dele? Murilo havia nascido com a bunda virada pra lua, e ninguém que o conhecesse negaria isso.
          E como um carrossel que roda revesando seus personagens, foi a vez de Adriano entrar em cena:
- Extraordinário! - E aproximou-se de Ruy, enquanto com as mãos tentava afastar uma mosca que teimava em persegui-lo. E continuou:
- Então você também afirma que as sereias existem?
          - Existem.
- E a aparência delas é semelhante à das pinturas?
- Mais ou menos. - Respondeu Ruy, começando a achar graça daquele religioso maluco, que não parava de gesticular.
- A sua sereia, como ela era?
- Ela era como, digamos, uma sereia, metade mulher, metade peixe.
- Oh, que interessante! Mas você não foi seduzido por ela. Por que será? Ela não cantava bem? Por que afirmam que elas cantam divinamente bem para seduzir os homens.
- Não ouvi canto algum.
- A sua sereia não sabia cantar, por isso você está aqui hoje. Porque se ela soubesse cantar hoje você estaria no fundo do mar.
- Pode ser.
- Ela tinha escamas?
- Não sei, eu a vi, mas não a toquei.
Alguns convidados acompanhavam atentamente aquele diálogo como a uma comedia bufa, pois pareciam estar se divertindo muito.
Salamandra sabia que Adriano não era maldoso e nem debochado, mas era infeliz em suas colocações e, por isso, sempre mal interpretado. E podia perceber que o desconhecido queimado de sol, com tatuagens cobrindo cicatrizes, também era sincero. No entanto, aquelas pessoas pareciam considerá-los dois comediantes, fazendo piada de verdades insofismáveis.
Ela sabia que um ser humano podia se tornar qualquer animal se sua vibração baixasse a esse ponto. E que nesses casos a transformação começava pela parte inferior do corpo. E que como Miloch que acabara de ver Bethoveen ao piano, outras pessoas viam sereias. Os desenhos eram feitos por essas pessoas que viam esses espíritos híbridos. Se o corpo material de uma sereia era assim, não dava para saber, porque elas mergulhavam assim que alguém tentasse se aproximar. Mas sereias existiam.
Desgostosa, Salamandra se afastou daquele grupo sentindo saudades de um passado do qual não lembrava, mas que sabia que existira. Como isso era possível?
De repente, seus instintos de fêmea foram despertados por um maldito perfume. Ela estava ali! E atraída pela fragrância foi andando, se preparando para a descoberta tão esperada. Mas quando o aroma se acentuou, se dividiu, e sua busca pela verdade se perdeu numa encruzilhada. Mas ela estava ali, e cedo ou tarde haveria de saber quem ela era, a mulher responsável por quebrar o encanto que havia entre ela e Miloch desde que o salvara do incêndio.
E foi então que se lembrou de Miloch. Aonde estava o seu amor? Teria ele perseguido o perfume, como ela?
Num banheiro qualquer da casa, Miloch vomitava a alma, prometendo a si mesmo que nunca mais beberia!

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