Salamandra acordou na manhã seguinte antes do sol. Virou-se na cama para espiar o homem ao seu lado e se deparou com uma cena inesperada: uma névoa diáfana envolvia Miloch. O que era aquilo agora? Pestanejou algumas vezes e viu, então, a fumaça translúcida se dissipar. E se perguntou se havia realmente visto aquela mácula obscurecer o brilho da aura dele ou teria a luz difusa do amanhecer pregado-lhe uma peça.
Lembrou-se do sonho ruim e não pode deixar de traçar uma correlação entre os dois fenômenos. Havia um liame entres eles, não tinha como negar! Elo após elo a corrente continuava se estendendo, traçando e delimitando os seus destinos. E concluiu que nada mais seria como antes. A vida transcorria numa sucessão de fatos inevitáveis, que muitos julgavam serem meras escolhas, mas que eram, na verdade, imposições decorrentes do status espiritual de cada um.
Levantou-se e foi para o banheiro. E, de repente, aquele alarme, seu íntimo conselheiro desde sempre, soou estridente quando avistou roupas molhadas, emboladas, dentro do box.
E aquela voz que só ela podia ouvir, soou imperiosa:
- Pega a camisa e cheira.
Um perfume feminino marcou sua alma como uma tatuagem marca para sempre a pele. E ela soube ali, naquele instante, o que havia acontecido.
Agora estava tudo claro para ela, a alegoria do sonho e a mácula criada que vira em torno dele naquela manhã. Daquela vez o tempo transcorrido entre o fato e suas consequências tinha sido mínimo, quase nada. Por que o tempo entre um e outro estava encurtando? Se todo castigo sobreviesse imediatamente ao pecado, conforme a gravidade dele, o Mal deixaria de existir. Mas não queria se deter em reflexões além daquelas que diziam respeito à ela e à ele.
Não faria perguntas. Não as fazia! Nunca precisava fazê-las, tudo para ela era uma questão de tempo, cedo ou tarde sempre acabava desvendando a verdade. E Miloch também merecia explicações. Faria essas revelações, se pudesse fazê-las, mas estava impedida e isso pesava sobremaneira no seu coração. Queria poder contar-lhe tudo, toda a verdade, mas não podia, ainda não.
Portanto, se ele quisesse dar satisfação dos seus atos para aliviar a consciência que o fizesse espontaneamente, talvez assim pudesse entendê-lo e até perdoá-lo. Talvez, porque seu coração havia sido ferido de morte.
Cheia de tristeza deixou o apartamento. Carregava consigo tantos mistérios e segredos! Lembrou que os pergaminhos estavam com o bispo Adriano. Talvez aquelas folhas amareladas contivessem a Verdade que a libertaria para viver como uma pessoa qualquer, uma pessoa que, um dia, afinal, morreria. Não que quisesse morrer agora, agora, não! Mas também não queria sobreviver a mais esta geração para fazer parte da próxima; não havia sofrimento maior do que não morrer nunca!
E era com essa esperança, de ler os pergaminhos e esclarecer seu passado, presente e futuro que concordara com as entrevistas com o bispo.
Entrou na sala ampla, iluminada pelo sol matinal, estranhamente perfumada. Teria ele queimado um incenso? Quando se aproximou descobriu que era o perfume dele, passado em demasia.
Ele estendeu-lhe a mão e sorriu. Parecia mais cordial do que da última vez que se encontraram. As entrevistas com aquele homem arguto eram sempre confusas, ele lhe fazia perguntas inesperadas e se escandalizava com as respostas. Era como se a verdade o ofendesse, ou abalasse suas convicções ao ponto de assustá-lo. E para fugir dela, daquilo que ele descobria ser a verdade, a mandava embora. Para logo em seguida chamá-la de volta para encaixar mais uma peça no seu confuso quebra-cabeça.
- Você comentou com alguém sobre nossa última conversa? – viu ela negar com a cabeça. – Ótimo! Eu te peço que mantenha o sigilo. Eu tenho uma posição importante a zelar dentro da instituição. Você me entende, não?
- Eu entendo que se o senhor morrer com esse apego todo a sua posição, a essa cadeira que ocupa – e olhou para a cadeira – ficará preso à ela e não poderá evoluir.
Adriano empalideceu. O que ela acabara de dizer o pegou desprevenido! Virou o copo d'água de uma vez, para esfriar o sangue. Ela sempre fora insubordinada, insubmissa, desaforada, imprevisível, mas parecia cada vez mais louca!
Deu-lhe as costas para se recompor. Esperou alguns instantes, repassando na mente a afirmação que acabara de ouvir, para entender sua lógica, porque sabia que ela sabia mais que ele.
- Então vou ficar sentado nesta cadeira depois de morto? – e seu tímido sorriso morreu nos lábios quando ela afirmou:
- Vai...
- De onde você tirou isso? – perguntou tentando controlar o nervosismo.
- Seu trabalho é lidar com almas, e salvá-las, deveria saber e ensinar que o maior sofrimento depois da morte é se libertar desse mundo.
- A morte é em si a libertação!
O encarou com compaixão antes de dizer:
- Quem dera fosse... – e disse, com tristeza na voz: - O senhor não pode sequer imaginar o quanto é doloroso deixar de ser quem fomos. Saudade é uma dor que fere nos dois mundos.
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Salamandra
RomanceEssa é uma estória permeada de um realismo fantástico, onde tudo pode acontecer. Poderia ser a história de sua vida, ou quase.