Capítulo 48

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     Já era tarde quando aqueles dois homens estranhos decidiram entrar no bar apinhado de pessoas. A princípio ficaram ofuscados pelas luzes, surdos pela música e paralisados pela agitação; não conseguiam sair de onde estavam, e o que era pior, ninguém ali parecia se dar conta que eles haviam chegado.
       De repente, um garçom avisou que não tinham mesas, mas que podia acomodá-los no bar. Seguiram o garçom que parecia ter se esquecido deles. De repente, ele apontou para um canto no bar. Depois de alguns minutos alguém por trás do balcão se deu conta deles e perguntou o que beberiam. Se entreolharam e pediram vinho.
        - Não servimos vinho. Olhem o cardápio de bebidas. – e levou mais alguns minutos antes de voltar a perguntar. – O que vocês vão beber?
        - Uísque. – decidiu Adriano.
        - Quantas doses?
        - Uma garrafa. – Decidiu Adriano, e viu o barman sorrir.
        Dali a pouco a garrafa e o balde de gelo foram colocados no balcão em frente deles. O barmen abriu a garrafa e serviu duas doses generosas e deixou o gelo por conta deles.
        Adriano e Renzo ergueram seus copos e começaram a beber. Adriano sabia que Renzo era de confiança dela, por isso o respeitava. Talvez ela tivesse lhe contado coisas que não lhe contara.
        - Estranho estar num bar assim no fim da minha trajetória, pois a vida toda fiz o sacrifício de evitar um ambiente desse. – afirmou Adriano, bebendo uma golada de uísque e observando a agitação ao seu redor. E se perguntou quem seria se tivesse tido uma vida comum, como daquelas pessoas.
        Por que seus pais decidiram fazer dele um padre? Nunca lhe perguntaram quem realmente gostaria de ser. Porque se tivesse tido uma chance de escolher, seria um médico, alguém que estudaria para cuidar dos males físicos do homem, e não de seus males espirituais. Curar corpos era muito mais simples do que curar almas. Ele mesmo, que tanto sabia, não conseguia aquietar seus anseios, secar as feridas e apagar detalhes da sua longa estrada de insatisfações. Por que não fora Salamandra que despertara tamanha inquietude nele, ela apenas as recrudesceu.
        Mas era covarde, sempre fora, hesitara quando tivera a chance de se rebelar e fugir do destino que lhe impunham e por insegurança recuara nessa débil tentativa e se deixara levar. E os outros venceram, subjugando suas vontades e seus desejos de menino. E por toda a vida soluçou por aquele instante que deixou passar e que o teria feito trilhar um caminho diferente. E ele disse adeus aos seus sonhos, e a si mesmo, porque os sonhos eram o extrato mais puro de uma alma e desistir deles era trair-se. E ele esteve assim amortecido por longos anos. Mas eis que, de repente, Deus se compadecera dele e lhe enviara Salamandra. Porque ela era o substrato que alimentaria suas raízes mais profundas, que o fixaria na terra fecunda da verdadeira fé, sustentando-o para que voltasse a germinar.
        Olhou para Renzo que bebia devagar, concluindo que ele era muito controlado. Se continuasse naquele ritmo acabaria bêbado e Renzo o colocaria na cama. Não precisava de uma babá, mas de um amigo em quem pudesse confiar e que confiasse nele.
        - Vamos fazer um brinde. – sugeriu para Renzo, erguendo seu copo quase vazio.
        E de brinde em brinde, beberam várias doses.
        Renzo nunca bebia, tinha medo dos extremos que levavam homens a cometerem loucuras. Era adepto da vida tranquila, ainda que monótona. Mas qual era o problema de uma vida assim? Era tão bom acordar e dormir sem sobressaltos e angústias. Não entendia aquelas pessoas que necessitavam viver numa gangorra para se sentirem felizes. E seriam verdadeiramente felizes? Ele tinha certeza dele, de quem era, e de como se sentia, e estava feliz. Só não conseguia estar absolutamente tranquilo por causa de Salamandra; tinha que protegê-la.
       Aos desavisados poderia parecer que não estava atento ao que acontecia com ela, mas era uma impressão errada, muito longe da realidade. Ele estava mais perto dela do que ela mesmo sabia, do que Adriano poderia supor.
       E Adriano tentava embebedá-lo para que falasse dela, contando as conversas que tivera com ela, que deviam estar guardadas com cuidado, por serem espantosas. Mas Renzo jamais diria tudo que sabia, não sem ela permitir que o fizesse. Suas confissões eram segredos e as guardavam como coisas sagradas, como aquelas ditas num confessionário, destinadas a serem enterradas nele.
        - Renzo, você sabe qual é a importância de Deus nas nossas vidas? – perguntou Adriano, enchendo ambos os copos.
        - Minhas avaliações sobre Deus são muito rasas, por isso gostaria de aprender com sua opinião a respeito.
        - Deus dá o sentido transcendental das nossas vidas, para que não nos sintamos perdidos e sozinhos. Sem Ele nada faria sentido, porque a vida não tem sentido algum; o herói e o covarde morrem e são esquecidos do mesmo jeito. Não há diferença visível entre o santo e o pecador, ou você consegue distingui-los? Nem precisa responder, você também não consegue avaliar o bem e o mal. – E concluiu: - O coração do outro é terra que ninguém pisa.
         Duas mulheres se aproximaram deles, insinuantes, e pediram uísque. Adriano despejou o líquido amarelo nos copos vazios e sorriu. E elas se encostaram neles, mas logo concluíram que deviam ser gays e se afastaram, agradecendo.
         - Renzo, sequer sabemos o que fazer com uma mulher! – e começou a rir. De repente, não conseguia parar de rir. E começou a tossir, como se estivesse engasgado com alguma coisa.
        Renzo acudiu, batendo em suas costas largas, e Adriano riu ainda mais.
        - Pare de bater em mim, homem! Estou rindo da nossa falta de habilidade com as mulheres. – e riu ainda mais  quando Renzo também começou a rir.
         – O que nós somos neste mundo, Renzo? Quando nos tornaram padres o mundo era diferente, e as promessas que nos fizeram cederam lugar a este novo lugar, que já não reconhecemos, e que sequer conseguimos entender. Você não acha que estamos ultrapassados?
        Renzo concordou com ele, porque sua cabeça doía com a música alta, e seus olhos duplicavam as imagens, superlotando o salão. Nem sabia mais como conseguiriam sair dali. E piscou os olhos quando Adriano perguntou a queima roupa:
        - Você nunca desejou uma mulher? Porque não sei você, mas eu sou homem. – E completou, respeitoso: - Haverei de respeitá-lo se gostar de um semelhante.
         Renzo concluiu que aquela era uma pergunta muito pessoal e muito difícil de ser respondida. Aprendera com o pai que a discrição era uma qualidade valiosa, principalmente para os homens. E sempre se dera tão mal nos momentos de fraqueza que acabara por concordar com ele; as pessoas eram predadoras ou presas.
        Aquela era uma pergunta capciosa porque o obrigava a enfrentar a si mesmo numa questão mal resolvida, as mulheres ainda eram um tabu para ele e preferia que continuassem a sê-lo. Elas eram um terreno pantanoso, areias movediças que poderiam tragá-lo facilmente, sufocando-o, por isso preferia ignorá-las do que pensar nelas.
         - Com o decorrer dos anos aprendi a concentrar minhas energias no trabalho e a suplantar esses caprichos.
         Adriano ergueu os olhos calmos e encarou o companheiro de longa data. Os dias felizes eram tão raros em sua vida que aquela noite era muito especial. Não queria perder aquele amigo, nem decepciona-lo, mas precisava ser fiel a si mesmo, e sincero com Renzo.
         - Pois eu te confesso, meu amigo, o celibato sempre foi um suplício para mim. E agora, diante da realidade social esse dogma se tornou um sacrifício inútil. Deve ter tido sua razão de ser, mas hoje não tem mais. Mas não foi sempre assim? Os poderosos ditam as regras e os demais as replicam sem sequer refletir por que o fazem ou se lhes convém fazê-lo. Mas, de repente, alguém quebra um paradigma e muda o curso da História. E os erros perpetrados são corrigidos para o futuro, mas não resgatam as vítimas do molde pretérito. E assim caminha a humanidade desde sempre. Mas a situação do mundo contemporâneo apresenta-se realmente periclitante, talvez como jamais se tenha visto na História. Mas este mundo é obra Dele e estamos em suas mãos. – Ponderou, Adriano, olhando para o salão onde pessoas conversavam e riam despreocupadamente. Sentiu-se angustiado por elas, que não sabiam o que ele agora sabia.
         - Estou lhe aborrecendo com minhas reflexões? – perguntou Adriano.
          - De jeito nenhum!
          - Você é um grande amigo, Renzo. – E continuou seu monólogo: - No entanto, se o indivíduo não crê em Deus, situa-se na esfera do Mal, visto estar propenso a transformar-se num mau elemento a qualquer instante. Por que é a certeza da impunidade que nos leva a cometer pecados. Se todos tivessem a certeza absoluta que seus atos maldosos, por menores que sejam, estão sendo registrados para que algum dia sejam cobrados, o Mal desapareceria naturalmente. Nem precisaríamos de Leis! Nem de religiões! E nós, Renzo, seríamos desnecessários. – Adriano tomou um gole do uísque e continuou. – Porque nós sabemos que os pecadores tentam comprar seus perdões e os sofredores, os seus milagres.
        Adriano encarou Renzo, que parecia ouvi-lo atentamente, e por isso continuou:
        - Mas Deus é lógica. Se Ele não fosse lógica o Universo seria um caos. Mas o Mal, como sabemos através das Escrituras, surgiu ao ser comido o fruto da árvore. Mas que enigma foi criado com essa degustação dos infernos! Porque eu te pergunto: o que é o fruto proibido, Renzo? Porque tem que haver uma lógica nisso!
         Os olhos perscrutadores do bispo se fixaram nos de Renzo, depois ambos desviaram suas atenções para o centro do salão onde uma mulher alcoolizada começava a dançar. Sua saia muito curta revelava pernas bem torneadas, e o decote mal conseguia conter os fartos seios. Mas era o movimento insinuante de seus quadris que parecia tê-los hipnotizado, pois não desviavam os olhos daquelas ancas se movimentando de um lado para o outro, para frente e para trás, num ritmo sensual.
        Quando o show acabou, Adriano encarou Renzo, e decretou:
        - Pois eu vou lhe revelar que o fruto proibido é a mulher! Eva é a origem de todo pecado!
        - Eis aí, então, o valor do celibato! – disse Renzo.
        E Adriano riu, concluindo que aquele padre era uma velha raposa esperta e muito inteligente.
         Mas não era só a mulher o problema que Deus criara para todos, inclusive para Ele mesmo. Haviam outros problemas que Deus parecia ter criado e ter perdido o controle sobre eles.
         - Na sua opinião, porque Deus criou o Mal? Se Ele quer nos salvar, para que nos deixa pecar?
         Renzo lembrou-se de algo que Salamandra havia lhe dito anos atrás, e repetiu fielmente suas palavras para Adriano:
         - É a Liberdade que nos humaniza, senão seríamos como o resto da Criação. O livre arbítrio é um direito divino do Homem, mas como poderíamos exercê-lo se Deus não tivesse criado o Bem e o Mal também?

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