Em busca de Miloch, Salamandra se dirigiu para o jardim onde chorões iluminados criavam uma atmosfera de magia, mas ele não estava ali. Ao se virar, deparou com o homem que a defendera de Jalou. Se ele acreditava ou não em sereias não tinha para ela a mínima importância. Mas ele viera em seu socorro e, por isso, devia-lhe alguma consideração.
- Você está me seguindo?
- Estou. – Respondeu Ruy, para quem a verdade não custava nada. E perguntou:
- Onde você viu a sereia?
- Em Atlântida.
Ruy não esperava por uma resposta tão direta, por isso a encarou momentaneamente confuso. Para em seguida se perguntar se ela realmente vira uma sereia ou estava a brincar. Mas antes que pudesse concluir qualquer coisa, ela perguntou onde ele vira a sua sereia. E Ruy se lembrou das montanhas nevadas e do mar gelado, de ondas rápidas. Aquele não era um point de ondas gigantes, mas a água a 7 graus era um desafio para os amantes das dificuldades. Ele mesmo enfrentara algumas vezes o mar canadense só pelo gosto do desafio.
- Em Tofino.
- E o que te levou a crer que era uma sereia?
- Só uma sereia sobreviveria naquelas águas congelantes, imóvel e sem roupa de neoprene!
Observou Ruy, suas cicatrizes disfarçadas por belas tatuagens, os cabelos clareados pela inclemência do sol e dentes perfeitos evidenciando-se no rosto bronzeado. Não era muito alto, mas a roupa mais colada ao corpo revelava músculos bem definidos. Outro atrativo seu era sua destreza, movia-se como um felino jovem, de porte médio. Aguçou o olfato e sentiu seu cheiro salgado misturado à fragrância de algum perfume famoso. Viu que suas mãos não estavam calejadas, e por isso concluiu que ele vivia no mar, mas não era um pescador. E os olhos que a fitavam sem se desviarem brilhavam como estrelas num céu escuro. Ela sabia que a alma de uma pessoa se concentrava nos olhos, e os dele evidenciava uma pessoa de vida incomum. Quem era aquele ser humano que transpirava sol e sal?
Ruy aguardou que ela terminasse sua análise como esperava pelas ondas gigantes, pacientemente. Percebeu que ela tentava adivinhar quem ele era, por isso decidiu ajudá-la, dando-lhe uma dica:
- Onde carro não chega, moto não passa, bike não vai e homem não pisa... e lá que eu estou!
Mas foi o gestual dele, assemelhado ao de um felino que matou a charada:
- Você é um surfista! – Decretou Salamandra, exultante.
Ruy riu, sentindo um prazer inusitado na companhia daquela desconhecida. Fazia muito tempo que seu coração não batia tão forte estando tão longe do mar. O que estava acontecendo ali, embaixo daquele chorão que parecia lhe sorrir?
Quando Salamandra soube que surfava ondas gigantes, perguntou:
- Você não tem medo de morrer?
- Às vezes, quando sinto que estou perdendo o raciocínio. Mas, misteriosamente, o mar me devolve para a areia. O mar não quer nada além do que lhe pertence. Cedo ou tarde, ele sempre devolve. No meu caso, tem sido cedo.
- Mas por que arrisca sua vida?
Ruy não precisou pensar para responder:
- Porque não temos garantia alguma, então, por que não seguir o coração?
Salamandra pensou em si, no sofrimento que era não morrer. A felicidade suprema consistia na alternância entre a vida e a morte. Mas todos ignoravam quanto benéfico era essa inevitabilidade do Ser, e perseguiam a qualquer custo o prolongamento da vida. No entanto, o corpo era apenas um instrumento para a alma realizar alguma mudança em si mesma e no mundo a sua volta, nada mais além disso! No entanto, nessa busca pelo prolongamento da vida, muitas almas deixavam de morrer na hora que, antes de nascerem, escolheram para fazê-lo e acabavam por perderem o próprio ritmo de suas existências. Nascer ou morrer fora do tempo certo tinha consequências nefastas, e ela era uma testemunha disso.
Sentiu um leve toque no ombro, talvez um carinho, e uma voz baixa pedindo que acordasse. Deu um breve suspiro ao despertar de suas abstrações, e viu Ruy parado a sua frente, observando-a.
- Você é encantadora.
- Mas não sou uma sereia.
- É sim, uma sereia de carne e osso.
Dentro da casa, em seu recuo providencial, Miloch pode observar que Murilo a observava discretamente. Por intuição, soube que houvera entre eles um passado em comum, e que ele continuava apaixonado por sua mulher. Um homem rendido a uma mulher não dava margens à dúvidas. Pode notar, também, que Jalou espiava o casal escondida atrás da cortina de uma das janelas que se abria para o jardim dos chorões. A inveja dela era perceptível, e entendeu que aquela mulher estava consumida pelo ciúme. O que levava Jalou a não gostar dela? A supremacia da mulher amada ou o amor que nutria por Murilo e que não era correspondido? Então ouviu um pigarro abafado, e viu o bispo se esgueirando pelo jardim, indo em direção dela.
E agora a via conversando e rindo para aquele homem extravagante, que mais se parecia com um tapete persa! A risada dela chegou até ele e imaginou que coisas ele lhe dizia para fazê-la rir daquele jeito. Tinha ciúmes do seu riso. Aquela festa fora uma decisão infeliz e só agora compreendia isso. Decidido a salvá-la da maldade do mundo, se dirigiu para o jardim.
Assim que Salamandra se afastou do salão, Murilo seguiu seus passos, obcecado pelo desejo de monopolizar sua atenção ainda que por alguns segundos. Mas viu quando Ruy se aproximou dela e começaram a conversar. Então recuou alguns passos e decidiu observá-los; o ciúme era um afrodisíaco que os homens apreciavam, apesar de detestarem seus efeitos colaterais. Mas aquele bate papo parecia não ter fim e, por isso, resolveu interrompê-lo.
Miloch e Murilo se avistaram, mas continuaram caminhando em direção da porta que se abria para o jardim onde Salamandra e Ruy conversavam. Os homens guerreavam ou declaravam paz por puro instinto de sobrevivência, sempre movidos por interesses comuns que nem sempre precisavam ser declarados. E não havia no universo masculino um interesse maior do que aquele contra um inimigo comum interessado na mulher amada.
Mas pararam, intrigados, quando viram o bispo se movimentando furtivamente por entre as árvores tentando aproximar-se do casal sem ser visto por ele. Miloch e Murilo se entreolharam, sem proferir palavras. Homens se aliavam a inimigos, mas nem por isso se tornavam amigos. E as coisas não eram diferentes entre eles, não a partir daquela noite. A relação comercial estava quitada, portanto, nada era devido entre eles. Doravante, qualquer pacto entre eles seria tácito, somente para salvaguardar um bem comum, Salamandra.
Mas que aquela intervenção episcopal era um enigma, isso era!
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Salamandra
RomanceEssa é uma estória permeada de um realismo fantástico, onde tudo pode acontecer. Poderia ser a história de sua vida, ou quase.