Capítulo 40

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Quando não desconfiava que o outro podia se tornar um adversário, Jalou abria a guarda e conseguia ser agradável. Então se tornava uma parceira vivaz, esperta e de grande valia. Ela podia ser aguerrida ou pacífica, e uma ou outra para aflorar dependia de suas impressões da outra pessoa. E Miloch lhe despertara confiança, por isso o tratava com camaradagem. Ele era direto, preciso, cirúrgico em suas avaliações tal como ela, então se identificou com ele; para ser exata, simpatizara com ele.
Percorreram a construção fazendo os últimos ajustes, retoques necessários numa obra de qualidade e bom gosto. Entre eles havia a concordância nos detalhes, na preocupação com a beleza, na busca da perfeição e na conquista do sucesso, porque sabiam, cada qual na sua seara, que o dinheiro e o concreto eram os pilares do mundo.
Jalou conhecia Miloch já algum tempo, mas não pessoalmente. E desde o primeiro contato admirou sua inteligência. Era um homem afeito aos cálculos. Mas desde que o encontrara no dia anterior que passara a admirar também o seu porte atlético e seu rosto expressivo, emoldurado por uma vasta cabelereira negra. E suas mãos grandes e fortes denunciavam um homem vigoroso; avaliava os homens pelas mãos. Ela também era uma mulher perspicaz, dedicada aos cálculos, bonita e disposta. E aquelas sincronias lhe traziam segurança para tratar com ele com toda liberdade e franqueza.
- Murilo quer dar uma grande festa de inauguração. Então, preciso saber seu prazo de conclusão para tomar algumas providencias.
- Entrego a obra na semana que vem.
- Ótimo! Então acho que terminamos. – e olhou para ele, aguardando. Quando ele concordou, completou: - Então vamos comemorar! Me leve para jantar.
Uma tênue equivalência despertou os sentidos dele; havia certa semelhança entre aquela proposta e uma outra que recebera tempos atrás. Também o perfume era o mesmo. Percebera o mesmo aroma de Susan em Jalou na noite anterior, quando a conhecera. E como naquela ocasião, se lembrou de Salamandra. Um sinal de alerta ainda soou em sua mente, mas era muito fraco para fazê-lo resistir ao próprio desejo que já se misturava a um desgosto antecipado. Porque já sabia que se arrependeria se porventura decidisse aceitar o convite tácito que recebia e que somaria mais uma culpa àquela que o atormentava desde então.
Pensou negar, mas havia o quadro intencionalmente extraviado. E ademais, aquele era um jantar como outros tantos, de comemoração por um bom negócio concluído.
- Vamos no meu carro? Perguntou.
- Vou no meu e você no seu, assim não teremos desculpas amanhã. – ela disse pegando a bolsa e fechando a porta atrás de si.
Miloch começou a manobrar o carro, mas ela parecia ter mais pressa. Arrancou antes dele e saiu avançando sempre a sua frente. E quando ele ficava preso num sinal, diminuía a marcha, como se estivesse esperando, para a parelha.
E quando se aproximava ela se distanciava alguns metros. E então ouvia o ronco do motor, o arranco repentino e rápido instigando-o a uma aposta, para logo a frente diminuir a marcha para esperá-lo.
Miloch acelerou e só se deu por satisfeito quando, numa manobra arriscada, ultrapassou a sua adversária. Sentiu o gosto da vitória, que foi muito breve, porque logo em seguida se viu deixado para trás. E aceitando aquele desafio descompromissado, fruto da provocação, perseguiu Jalou pelas ruas da cidade. E quando finalmente parou viu que estava em frente de um motel e soube que se entrasse ali perderia novamente a aposta para si mesmo. Desculpou-se e arrancou com o carro, não ia mais ser vítima de si mesmo.
        Assim que desligou o telefone, Salamandra recebeu a mensagem de Miloch de que demoraria um pouco mais do previsto. Acabara de recusar o convite de Murilo para jantar justamente para esperar ele chegar, e agora aquela mensagem. Lembrou dele chegando na noite anterior exalando aquele perfume desagradável. Então, pegou o telefone e ligou para Murilo, voltando atrás em sua recusa. Correu para tomar um banho e se vestir para o jantar com aquele lobo supostamente solitário.
Uma hora depois Murilo abriu a porta do carro para ela entrar, sentindo o desejo invadi-lo com uma força avassaladora. Precisava dela para sua vida ter sentido. A lembrança que ela tinha dele não correspondia mais a sua realidade; era um depravado recuperado e tinha que lhe demonstrar isso de todas as formas e maneiras possíveis.
Ela entrou no carro e perguntou:
- Quem você está traindo?
Ele segurou sua mão e declarou:
- Me perdoa...
Dessa vez ela não retirou a mão. Seu coração se encheu de esperança; seria esse um sinal de que ela o havia perdoado?
Murilo deu a partida no carro, deslizando suavemente pelas ruas da cidade.
Em seu quarto, Adriano refletia sobre sua vida. As atenções dadas, as conveniências concedidas e as fracas veleidades de entendimento permitidas  haviam cessado pouco a pouco para ele, deixando a nu a antipatia, a irritação, o rancor e, de sua parte, o ódio pelas inverdades que lhe ensinaram. E essas conclusões dos últimos tempos azedavam ainda mais seu caráter já áspero e rabugento.
As entrevistas com Salamandra eram ocasiões de recriminações violentas que fazia a si mesmo, e que não aliviavam sua alma atormentada, porque essa indiscrição de fazer o que bem entendesse, diante de Deus, poderia estar lançando-o ao desterro espiritual.
Mas já não era mais possível dispensa-las, por isso ligou para ela, para marcar uma conversa para o dia seguinte, mas seu telefone estava desligado! Entrou em pânico! Onde estaria a única pessoa capaz de salvá-lo do inferno?
Ligou para Renzo, para que viesse imediatamente aos seu encontro. Esperou pelo padre andando de um lado para outro, com uma ansiedade crescente. Estava entre a cruz e a espada, e tinha que decidir entre uma e outra, mas não poderia fazê-lo sem a ajuda dela, e Renzo certamente era a luz para seu pensamento turbado. Estava tão perturbado pela dúvida do que fazer que precisava recorrer a um padre para corrigir a rota, o rumo, o próprio destino.
Quando ouviu as discretas batidas na porta, se arrependeu de ter recorrido aquele homem sossegado; certamente ele não tinha conflitos tão graves como os dele, portanto, são saberia entendê-lo, menos ainda, ajudá-lo. Mas já era tarde demais para arrependimentos; e era justamente disso que tentava fugir, de se arrepender, porque os arrependimentos eram sempre tardios. E assim que abriu a porta para o velho amigo de sacerdócio, foi desabafando:
- Meu amigo, estou pressentindo uma desgraça! – viu Renzo espantar-se, e continuou:
- O mal está tentando me corromper, me desviar do caminho, e sinto minha força ser debelada dia a dia. É uma reviravolta alucinante e não sei como me libertar dessa tormenta. Meu espirito está na beira do abismo, quero mergulhar nele, mas tenho medo, porque sei que esse mergulho não tem volta, não para mim. Não sei mais se acredito nas coisas nas quais acreditei a vida toda, ou pelos não como as entendi, e o que sou sem essas convicções? Meu ser está perdido! Vou renegar quem sou? Mas fico me perguntando, o que acho que sou e o que desejei ser? Não estou confiando na palavra de Deus! E diante disto só posso concluir que o meu fim será trágico! E só há uma pessoa que pode me empurrar para o abismo ou salvá-lo dele!
Renzo ouviu contrito aquele desabafo, sabendo que ele se referia a Salamandra. Ela também haveria de salvá-lo quando morresse, por isso podia entender o que lhe revelava Adriano.
- O que acha disso tudo, Renzo?
Renzo pensou por alguns segundos, antes de responder:
- Eternamente Salamandra...

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