Margot voltou para o camarim aparentemente refeita do duro golpe. Pediu para que todos saíssem, inclusive Théo, precisava ficar sozinha.
Théo se afastou surpreso com a reviravolta no caso; minutos antes ela parecia vencida, agora voltava à cena, vitoriosa. Ela era, de fato, uma atriz ou Salamandra era uma bruxa de verdade.
Sozinha, Margot ensaiou alguns efeitos diante do espelho, coisa que só os atores faziam para que o espectro do personagem se incorporasse à ele. E nessa interseção da realidade com a fantasia, pensamentos simples tornavam-se inarticulados, porquê não havia como subsistir duas almas estreando num só corpo, era o ser real ou o fictício.
Mas da sua facilidade em fantasiar a realidade não duvidava, porquê havia nascido com uma caixa de purpurina imensa, e nela não havia tempo ruim. Ela mesma se orgulhava de sua audácia, de sua coragem, de sua índole destemida, tão genuína, verdadeira e valente, no entanto, agora, prestes a fazer seu batismo de fogo, temores tão secretos, tão íntimos de qualquer ser humano, avançavam sobre ela tal qual sombra ao entardecer.
Sentia-se uma atriz, embora na verdade aprendia a sê-lo, mas ser uma eterna aprendiz eram ossos do ofício que em nada lhe subtraiam. Ademais, tinha intimidade com o palco, subira nele incontáveis vezes nos testes para elenco, portanto, nada devia temer. Mas a despeito disso, não estava segura de si, de seu talento, e o medo persistia. Medo do quê?
Retocou os olhos, acentuando o preto das pálpebras e o vermelho dos lábios. Três batidas na porta encerraram o intervalo de ensaio, agora era tempo do espetáculo começar.
Dali a pouco a pesada cortina carmim se abriu para um teatro lotado, e Margot fez sua tão sonhada estreia com toda pompa e circunstância e foi um sucesso. Quando foi efusivamente aplaudida descobriu que o que temera foram as vaias daqueles de quem esperava o endosso.
Na coxia, Theo preparara outro palco para Margot. Ela merecia todo seu desvelo. Não negava que tinha hábitos de um homem que envelhecia, diferenças que ela conciliava com naturalidade, de forma irrepreensível. E embora ela não tivesse qualquer virtude domestica, a sua extrema juventude e suas histórias quase infantis que o faziam rir se deviam ao seu espirito decente, franco, verdadeiro e era isso que amava nela e isso lhe bastava.
Margot saiu do palco e caiu nos braços de Théo que a suspendeu do chão. Paradoxalmente, aquele era o dia mais triste e feliz de sua vida.
- Mon cheri, sua estreia foi um sucesso! Venha, alguns críticos que convidei querem entrevista-la.
- Eu não estreei sozinha, Theo.
Viu o rosto bonito dele se acalmar, mas a mão nervosa alisar a barba espessa e grisalha que tanto lhe agradava. Aquele era um gesto que denunciava sua ansiedade. Ele tinha mãos fortes para lidar com as coisas, mas tão gentis e cuidadosas quando tocavam seu corpo.
- Vamos ter um bebe... - Ela era assim, espontânea, impulsiva, direta, um interstício entre a calma e a tormenta.
A comemoração se prolongou noite adentro, sem limites, num folguedo imemorial, onde os poucos convivas foram tratados como se reis fossem.
Até Murilo, que sempre se opusera obstinadamente àquele projeto dele de testar a favor dela, desistiu de lutar contra quando soube da gravidez de Margot. Theo parecia-lhe um novo homem, tão ou mais jovem de quando o conhecera, e era isso que importava na vida, um motivo para exalta-la.
E concluiu que somente ele parecia precisar resolver algumas questões para viver em paz, para aquietar o espirito sempre tão libertino. Mas precisava dela, Salamandra, para romper com seu histórico indisciplinado, sem deveres e obrigações quando entregue aos prazeres do mundo.
Do outro lado do salão, Susan não tirava os olhos de Miloch. Como seu tio, alimentava sem saber uma recordação como se amor fosse. De um jeito ou de outro, ambos achavam que amavam pela primeira vez, mas o que sentiam era fantasioso.
Miloch viu Susan e sentiu uma certa emoção, não era um homem banal, aquela única noite com ela marcara sua vida e a dela e não havia como apaga-la. Mas não queria prolongar aquela agonia alimentando qualquer esperança que porventura ela tivesse, seria inútil, visto que não a amava. E na tentativa de encontrar Salamandra, acabou por esbarrar na pianista.
- Oi. - Cumprimentou Susan.
E agora, o que dizer sem ofender os brios daquela artista fabulosa? Não era de seu feitio magoar o sentimento das pessoas, mas também não sabia como evitar isso. Buscou Salamandra com o olhar para afastar qualquer duvida do que devia fazer, e a viu conversando animadamente com Murilo. Então o sangue subiu à sua cabeça e perdeu o bom senso; bancou o simpático para disfarçar o mal humor, fez charme para disfarçar o ciúmes e num esforço Herculano esqueceu dela e prestou atenção naquela que parecia quero-lo a todo custo.
- Preciso te contar uma coisa... - Ela disse baixinho, chegando bem perto dele.
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Salamandra
RomansaEssa é uma estória permeada de um realismo fantástico, onde tudo pode acontecer. Poderia ser a história de sua vida, ou quase.