Capítulo 73

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Quando viu Salamandra se despedir, Adriano sentiu-se confortável para ir embora na companhia de Renzo.
- Vamos embora, Renzo, nada mais nos prende nesta festa pagã. - E observando o padre, disse:
- Estou com medo de você!
- Como assim, senhor?
- Com a facilidade com que você assimila o sangue do cordeiro de Deus!   E os dois homens começaram a rir.
Ao chegar em casa naquela noite, Adriano dispensou o genuflexório e se ajoelhou no chão; havia uma mística nas penitências, a de que o sacrifício criava a comunhão com o Espírito Santo. A grande graça concedida por Deus ao homem consistia em crescer e se desenvolver na virtude e perfeição de uma vida cristã. E sempre vivera dentro do entendimento, da fortaleza, da sabedoria, da piedade, da ciência e temor a Deus. O fruto da vida sacramental era ao mesmo tempo pessoal e eclesial, porquê se conquistava a salvação do espírito e da matéria. E foi movido por essa fé que ficou ajoelhado a noite toda rogando a Deus um sinal de que continuava nesse caminho reto. No entanto, a aurora trouxe-lhe a consciência de que desperdiçara uma noite de sono em vão porque Deus parecia ter tampado os ouvidos ou ele desaprendera a ouvi-Lo.
         Com dificuldade, apoiando-se na cama, gemendo baixinho, se levantou vagarosamente, sentindo os joelhos rangerem. Tomou um banho demorado, na esperança que a água quente melhorasse seu estado de espírito e aliviasse as dores nas articulações. E para não sentir que estava tudo perdido, usou de diligência nos preparativos da toalete. Olhou-se rapidamente no espelho, querendo ver sem ver se tinha a aparência do ontem, para concluir que só ela deveria acordar melhor do que dormira.
Calçou os sapatos polidos e saiu para andar pelos jardins. Aquela rotina sempre o inspirava nas primeiras horas do dia, mas agora corria para o ar fresco em busca de um bálsamo para suas recentes feridas d'alma. Muitas coisas haviam mudado desde que o pecado fecundara sua alma e por isso recorria àquele oásis não mais como um deleite matinal, mas como remedio. Salamandra lhe dissera que as plantas e os animais não tinham pecados e para ele, diante do dilema que enfrentava aproximar-se de elementos imaculados era vital como o ar que respirava.
O mensageiro aproximou-se entregando-lhe um envelope oficial. Esperou ele se afastar e foi sentar-se embaixo de um caramanchão florido àquela época do ano. Lembrou-se com nostalgia de sua juventude, quando tinha energia para fazer longas caminhadas sob um sol inclemente! Agora ele parecia queimar-lhe a pele muito branca e já engilhada, e buscava as sombras como o sedento à água.
        Olhou para o envelope lacrado com o selo oficial, sabendo que aquela era uma correspondência sigilosa. E um arrepio percorreu-lhe o corpo, porquê antevia o sinistro a que estava sendo novamente convidado a participar. E perguntou-se porquê enveredara por aquele caminho tortuoso, quando podia tê-lo evitado. Talvez, no início, a curiosidade o atraíra, adentrar no desconhecido, no misterioso maligno, mas depois o motivo que o impulsionara fora o de evidenciar o Mal para afastar sua influência e efeitos. E então não lhe foi mais permitido voltar atrás.
Suas mãos tremiam enquanto abriam o envelope. Seria a emoção ou os primeiros sintomas de que começava a sofrer também de Parkinson? Era só o que lhe faltava, sofrer dessa moléstia terrível! Começou a ler vagarosamente o que uma letra fria e impessoal escrevera.
Conforme ia lendo uma palidez de morte cobria seu rosto sempre corado. Seu semblante se alterou, tinha a fisionomia crispada e o velho toque no canto direito do lábio voltou subitamente. E como vaticinara, lá estava o convite funesto.
Mas eis que, de repente, percebeu ali o sinal implorado a Deus; ele havia aceitado seu recurso interposto com tanto sacrifico e se apiedado de seus joelhos enferrujados!
        Lembrou-se de Renzo, talvez ele pudesse desempenhar aquela missão sob sua supervisão. Confiava nele mais do que em qualquer outro e tinha um plano secreto.
Adriano entregou-se ao planejamento de sua próxima e derradeira jornada; estava feliz por constatar que Deus não era nem ciumento e nem vingativo!
O sol ja havia atingido seu zênite e o ar estava abafado quando deixou a sombra amiga do caramanchão em direção aos seus aposentos.
Sentou-se em sua cadeira de espaldar alto sentindo um prazer revigorado em fazê-lo e lembrou-se de Salamandra dizendo que continuaria preso à ela após morrer se não se libertasse do apego à sua posição na vida material. Mas, pensou, onde mais se sentiria tão bem após à morte? E ocorreu-lhe a agradável perspectiva de continuar após morto a vida que levara enquanto vivo.
Afastou os devaneios para se concentrar nos próximos passos a tomar, e pegando o telefone discou o numero privativo de Renzo. Quando ele atendeu, disse entusiasmado:
- Prepare-se, meu amigo, para sacudir o esqueleto!

SalamandraOnde histórias criam vida. Descubra agora