Capítulo 49

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      Então decidiram sair dali para a madrugada silenciosa. Adriano carregava a garrafa de uísque debaixo do braço como quem carrega um tesouro. E Renzo lembrou-se que ao longo dos anos o vira com a Bíblia debaixo daquele mesmo braço. O que estava acontecendo com aquele homem de fé?
       Uma brisa fresca soprou do mar e como que atraídos por ela foram caminhando ao seu encontro, e se viram na praia deserta. Adriano deitou-se na areia fria e contemplou o céu estrelado.
        - Renzo, sou um homem decadente, daqueles que está prestes a anular todo um passado de privações e sacrifícios por uma quimera. Sou como a esperança derradeira de um fracassado, sem futuro. E o maior absurdo é que me deixei convencer que o plano de Deus era construir o Céu na Terra, e que para isso era necessário que eu me sacrificasse. E agora essa convicção não me sustenta mais. Minha vida está perdida, porque já nem sei mais para onde eu devo caminhar. E meu tempo eu sei é pouco, por isso preciso encontrar dentro de mim alguma centelha divina que diga que não fui um tolo, para dizer que o meu caminho tem que ser onde Ele for. Mas quando olho a minha volta, onde quer que eu esteja sinto a solidão, e vivo nesse desespero e Deus não vem me ajudar. E a cada instante o crente que eu fui vai morrendo, e choro tanto, mas minhas lágrimas secam e quando elas secam eu rezo, porque só me resta orar para que Ele me salve. Mas continuo chorando só, sem ter Ele comigo.
        O haviam feito acreditar que Deus salvava infalivelmente todas as pessoas que se arrependessem de haverem pecado. Ele tinha esse poder extraordinário; bastava querer para salvar. Muito antigamente as penas eram imediatamente cumpridas com donativos. Havia, inclusive, uma tabela de valores a serem exigidos conforme a gravidade da ofensa a Deus. Mas isso causou um cisma que enfraqueceu a confiança nos mandamentos; naquele sistema de compensações os pobres não teriam chances de serem salvos. Então o passaporte para o perdão deixou de ser monetário; a nova ordem privilegiou as orações. Nos seus primeiros anos de sacerdócio o confessionário ainda era o único instrumento para qualquer um alcançar o perdão divino, e incontáveis vezes determinara um Pai Nosso para apagar um pecado. E nada mais o interessava além de servir a Deus; ao padre cabia prescrever o tratamento certo e a Ele, a cura.
Então Salamandra asseverou-lhe que Deus salvava as pessoas que eram úteis ao Seu plano, e que deixava de lado aquelas que atrapalhavam ou que eram inúteis. E que era preciso que as condições para se ser salvo estivessem reunidas, e o homem era quem deveria criá-las. E que qualquer outra fé era superficial, era uma fé morta, inútil. E ela ainda lhe dissera:
        - Se a nossa morte causar um prejuízo para Ele, teremos a certeza de que estamos do Seu agrado.
        Essa conversa causou uma reviravolta em suas bases, mas só se deu conta disso quando ouviu a confissão de um homem que havia matado outro. Sentado no confessionário, protegido pela sombra, sentiu-se gelar. O homem não parava de revelar os detalhes do crime e de como agora se sentia a respeito de si mesmo, mas não conseguia mais ouvi-lo, só pensava na penitência que deveria aplicar-lhe para que alcançasse, realmente, a benevolência divina. Não havia mais uma tabela com o valor de cada pecado em que pudesse assegurar a sua rendição à Deus, mas era seu dever salvá-lo e já sabia que as orações não tinham esse poder. Por isso, disse-lhe ao final da confissão:
        - Você deverá salvar a vida de pelos menos duas pessoas, para compensar aquela que tirou.
        Adriano afastou as lembranças e encarou Renzo, que parecia dormir sentado. Aparentemente, Renzo não tinha conflitos, pois seu estado de espírito era sempre o mesmo: baixa frequência e cadência inalterada. Ele também já possuíra aquela estabilidade emocional, a paz espiritual que torna a vida agradável e segura, mas o milagre Salamandra jogara por terra suas convicções. E se perguntou como o amigo sobrevivia a ela sem perder pelo menos parte do juízo, porque ele sabia, tinha certeza disso, Renzo sabia mais coisas que ele.
        Ela gostava e confiava mais em Renzo do que nele, e isso causava-lhe ciúmes, afinal, por mais que tentasse agradá-la não conseguia conquistar nada além de respeito e, claro, gratidão por tudo que fazia para protegê-la. E ela lhe devia muito!
       Quando se virou para acordar o amigo, viu que ele o observava silenciosamente.
        - Achei que tivesse adormecido?
        - Em momento algum.
        - Então me revele seus pensamentos. – e percebeu que Renzo estava longe dali.
        Enquanto Adriano desabafava suas angústias, Renzo se lembrava de uma conversa que tivera com Salamandra logo após ela ler Hobbes. E que comentara com ela uma afirmação célebre do autor:
        - Ele afirmou que o homem era o lobo do homem.
        E quase pode ouvi-la dizer:
        - Hobbes era um ingênuo, porque essa luta entre os homens iniciou-se na outra dimensão a partir do momento em que os semi-deuses foram criados. E essa batalha desceu à Terra quando os primeiros espíritos receberam um corpo físico. Os mais fortes queriam apoderar-se de todas as regiões conhecidas àquela época, governando-as conforme seu bel-prazer. Para isso, recorriam à violência, sem distinguir o bem e o mal. E foi graças a isso que, pouco a pouco, a inteligência do homem foi se desenvolvendo. O atrito entre o Bem e o Mal foi necessário para que a cultura material progredisse. Tudo que existe faz parte do plano divino, e como religioso você deve saber disso.
        - Eu sei o que minha religião me fez saber, e Hobbes disse que o medo dos poderes invisíveis, inventados ou imaginados a partir de relatos se chamava religião.
        - Ele era materialista, porque não acreditava nas explicações invisíveis para os fatos visíveis. E teve que estudar muito depois de morrer para apreender a Verdade. Mas agora ele sabe que está na dimensão invisível a origem de tudo que acontece neste mundo visível, e que sem essa análise o homem não poderá descobrir a causa dos problemas e muito menos suas soluções.
        Adriano percebeu que não arrancaria nada de Renzo, por isso se levantou. Renzo, que estava absorto nas lembranças se assustou quando o ouviu dizer:
       - Vamos para casa, Renzo. Cansei! O fato de que estudei tanto para me tornar digno de representá-Lo, e a afirmação dela de que não possuo a noção verdadeira de Deus, não tem uísque que apague.

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