Theo sentiu a velha amargura de um predador que tem sua presa retirada subitamente da boca. E novamente salivou pela delícia não saboreada. Seus instintos foram despertados pelo antepasto promissor, mas em seguida lhe foi negado o regalo da especiaria prometida. Sentiu o aroma dela, mas não o seu sabor, e como em outras ocasiões, mergulhou numa secura implacável. Encarou a mulher que lhe convidara para um banquete, mas que se recusara a servi-lo. Mas ela era diferente das outras mulheres, ela era uma atriz e só lhe despertara aquela fome voraz para provar que era capaz de fazê-lo, e agora sabia que ela nunca tivera a intenção de servir o prato principal.
A expressão desiludida dele era como um Oscar para Margot, que sorria satisfeita com o seu desempenho. Viu que o homem a fitava firmemente, com os sobrolhos franzidos, reprovando sua leviandade, e por alguns instantes se sentiu intimidada. Mas essa impressão desapareceu quando o viu cair numa sonora gargalhada. Então, relaxou e riu também.
Uma música animada começou a tocar e Margot puxou Theo para o centro da pista e dançaram. Ela executava passos de dança que Theo prontamente copiava. E ficaram acompanhando o ritmo das músicas e rindo sem parar por muito tempo. Até que suados e sedentos, deixaram a pista e pegaram dois drinques.
Theo ergueu a taça:
- À la vie!
- À la vie! – repetiu Margot, tocando a taça dele com a sua.
- Você ainda está apaixonada pelo Murilo?
Ela não esperava por aquela pergunta e por isso ficou meio atordoada, sem saber o que responder. Bebeu todo o drinque, refletindo sobre seus sentimentos acerca de Murilo. Não era o tipo de mulher que pensava muito sobre os aspectos da sua vida. E desde que perdera os pais, quando ainda era uma adolescente, que passara a aceitar a transitoriedade como algo inevitável.
- Ele te contou sobre nós?
- Seus olhos me contaram sobre vocês.
Margot encarou seu interlocutor sem entender.
- Minha cara, quando não se está interpretando, o olho é o espelho da alma. – E concluiu:
- Mas se não quiser responder, não precisa fazê-lo.
- Nos envolvemos por um período muito curto, por insistência minha. Ele não queria, fugiu de todas as maneiras que um homem pode fugir de uma mulher, mas acabou vencido.
- Creia-me, a sucumbente foi você, e não ele. – Conhecia Murilo tempo demais para acreditar na versão de Margot dos fatos.
O amigo era um conquistador por excelência, o garimpeiro mais tenaz e sapiente que conhecera, e o colecionador invicto de muitas vitórias. E nunca se gabara por isso, nem pretendera provar quem era, eram aquelas raras pessoas que possuíam sorte na vida. De forma natural, sem o mínimo esforço, seus sonhos e desejos eram realizados. E era sempre ele a declinar das conquistas que fazia, negociais ou amorosas, exceto Salamandra. Ela era uma excepcionalidade.
Desviou os olhos de Margot para procurar por Salamandra, e a avistou reluzente ao lado de Murilo e daqueles dois sacerdotes. O que faziam aqueles religiosos numa festa pagã? Desviou os olhos dos dois padres para fixá-los nela, naquela mulher cheia de mistérios e muita conversa fiada. E contrariado lembrou-se dela afirmando que ele não enxergava um palmo a frente do nariz. Quem era ela para desafiá-lo assim? Ele acreditava naquilo que se podia provar, mas ela não, ela acreditava em fantasias. Mas o que mais o intrigava era o fascínio que ela despertara em Murilo, ao ponto de fazê-lo acreditar que vira uma sereia! Logo ele que sempre fora um homem tão sensato!
Recebendo um chamado inaudível, Salamandra avistou Theo, e sentiu sua antipatia tocá-la. Ignorou os sentimentos dele, afinal, não fora criada para agradar aos outros humanos, mas para ser do agrado de Deus. E era essa sua única preocupação, a de não falhar com Ele. De repente, um outro chamado avisou-a de algo com relação a Miloch, mas não soube precisar o que significava, por isso o procurou com os olhos e foi ao seu encontro. Algo aconteceria e precisava estar ao seu lado para protegê-los.
Acompanhando o olhar de Theo, Margot avistou Salamandra e perguntou:
- Você conhece aquela linda mulher?
- Tive esse desprazer. – Respondeu com uma expressão indefinível.
Margot ia perguntar alguma coisa, mas a voz de Jalou, descendo as escadas, chamou a atenção de todos:
- Senhoras e senhores, eis Susan Rohë!
Quando a avistou, Miloch cambaleou. Seus joelhos se dobraram e teve que se apoiar na pessoa ao seu lado para não tombar como um enfartado. Tinha bebido muito, isso era inegável, mas aquilo não era fruto do álcool. Bebida nenhuma reuniria tantos convidados indesejados! Aquela festa era uma tetra dos deuses para castigá-lo! Não tinha outra explicação para tantas coincidências! Agora tinha certeza de que era alvo da vingança deles! A merda estava completa, logo o ventilador ia soprar e espalhá-la pelo mundo, e por isso decidiu morrer antes, e tomou mais umas duas doses de uísque.
Salamandra se aproximou desapercebida. Tocou a mão de Miloch e pode senti-lo descompassado. Por algum motivo ele andava bebendo muito, mas sabia que as circunstâncias criavam e destruíam hábitos, por isso não se preocupava. Tudo era uma questão de tempo. E Miloch tinha direito ao tempo dele. Viu a pianista se dirigir ao piano já saboreando a apresentação que Bethoveen faria.
Susan foi recebida com entusiasmo. Um corredor se abriu entre os convidados para que ela chegasse ao piano de calda, onde se sentou. Um silêncio se abateu sobre todos, e só foi quebrado pelo som da primeira nota. A partir dela as composições de Bethoveen invadiram o espaço.
Foi então que, subitamente, Miloch viu Bethoveen sentado ao piano! Com os olhos petrificados, a boca aberta, acompanhava a cena absurda! Virou o copo, mas errou a boca. Fechou um olho para ver melhor, e viu. E não conseguiu mais se desviar daquela visão irreal.
- Eu consigo ver... – balbuciou para Salamandra.
- O que você consegue ver?
- Ele...
- Ele quem?
- Bethoveen!
Mas naquela noite Salamandra não viu Bethoveen tocar, ao piano estava Susan. Por que não conseguia mais ver o que já tinha visto antes? E Miloch, que nunca enxergara nada além do mundo da matéria, agora conseguia ver o lado invisível das coisas!
E novamente lembrou-se da mordida que dera no peito dele. Por que o ferira? Lembrou-se do gosto salgado do sangue dele, e que lambeu a ferida para curá-la. E a partir daquele dia a vida tomou rumos inesperados. Em seguida a dentada, não enxergou a redoma de vidro sobre a cidade. Aonde fora parar aquela proteção invisível? A cidade estava entregue ao Mal ou era ela que começava a perder a quinta visão?
E aquela voz suave pedindo que acordasse sempre que adormecia na varanda de casa? De quem era? De onde ela vinha? Novamente decidiu que conversaria sobre esses episódios com o padre Renzo, talvez ele tivesse uma resposta para essas questões, para esses misteriosos fatos. Já devia tê-lo feito, mas os dias passavam e os acontecimentos salopavam sua intenção. E ia seguindo seu caminho, sem saber com precisão para onde estava indo. E desde quando sabia disso? O seu passado se confundia com o seu futuro e o seu presente só existia para ligar ambos.
- Quero ver mais dessas coisas invisíveis. – sussurrou Miloch, extasiado.
E Salamandra concluiu que Miloch, naquele exato instante, adentrava num mundo inimaginável, só dele, porque o homem dependia do seu pensamento.
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Salamandra
RomanceEssa é uma estória permeada de um realismo fantástico, onde tudo pode acontecer. Poderia ser a história de sua vida, ou quase.