Murilo ainda permaneceu no escritório do amigo tempo suficiente para terminar o uísque, desfrutando do conforto daquele espaço tão particular, repleto de informações raras devidamente catalogadas e guardadas em estantes de jacarandá.
Espiou a cidade a noventa metros abaixo, tão caótica, parecer um paraíso; como à distância tudo parecia tão melhor! Até sua própria vida parecia mais satisfatória do que realmente fora, porque se analisasse friamente o que sentia naquele instante diria que não era felicidade.
Certos feitos incomuns, mais fruto da sorte do que do esforço, deram- lhe uma especie de gloria entre os homens e entre as mulheres, cobiça. Os primeiros trouxeram-lhe ouro, elas, prazer. Eram ideias caprichosas, excêntricas, que lhe afloravam à mente criando fantasias da mais baixa volição, inúteis, imperfeitas, mas que a época pareciam-lhe sinônimo de uma vida prodigiosa. Porém, essas suas pretensas façanhas, esse arremedo de sucesso, não passaram de simples bravatas inúteis para Salamandra, que as ignorou por completo.
Ela tinha razão, porque hoje descobria nelas, com vergonha, um desejo de agradar a todo custo e de atrair a atenção para si, sobretudo dela depois que ela desdenhou dele naquele dia que se conheceram.
Tentou faze-la perder o juízo e, como as demais, sucumbir ao seu sex appeal, mas a suposta atlante se achava superior à ele, e era, porque foi neste pouco caso dela que sua presunção ruiu como um castelo de areia e foi conquistado irremediavelmente.
Antes só havia ele, aí tudo passou a se resumir neles, agora só havia ela.
Isso era amor, o que não era o caso do amigo. Théo estava obsedado, concluiu, tomando o resto do uísque. O álcool era um adoçante para os azedumes da vida, mas já fazia algum tempo que beber se tornara mais um mal-estar do que um alívio, por isso desistiu de colocar outra dose no copo e saiu do escritório.
No camarim improvisado, montado por Théo, Salamandra admirou o mundo simplório de Margot antes de sair fechando a porta atras de si.
Elos espirituais existiam e exerciam um misterioso poder no ser humano, sendo a causa dos encontros e desencontros. É uma força enigmática, da qual não se pode fugir, ainda que se queira. O suposto acaso é um acontecimento escrito, porquê ainda que se queira não se consegue cria-lo e nem quando se deseja, consegue-se evita-lo. E foi esse jugo abstruso que os uniu naquela noite.
Murilo viu Salamandra a sua frente e sentiu seu coração disparar no peito e a boca secar. Mas aquele frenesi dos sentidos não durou mais que alguns segundos, pois imediatamente se recompôs e assumiu o controle de suas emoções, do impulso banal do desejo e o tremor involuntário que sacudiu seu corpo.
- Para estar junto não precisa estar perto, basta estar dentro. - Disse ele, aproximando-se, suspendendo-a do chão num abraço fogoso.
Salamandra sentiu seu hálito quente e alcoolizado e o desejo a fez fechar os olhos. Lembrou-se do prazer que aquele homem impetuoso causava-lhe com sua posse arrebatada, quase violenta. Sentiu mãos masculinas, impacientes, invadirem suas roupas queimando sua pele com um fogo abrasador.
Desejaria ser fria, indiferente, isenta de toda excitação fisica, mas aquele homem a atingia de forma brutal. Era um delirio de intrepidez, uma especie de estranho orgasmo da mulher unida a seu destino, e essa coragem embriagadora de ser o que sentia persistia nela sem interrupções. E uma mulher sedenta de prazer não prevê o perigo, porquê ele nao existe.
Sorriu ao pensar que a cada dois pensamentos seus um era consagrado a seu próprio prazer e o outro ao prazer do outro. E que teria muito a perder se não vivesse aquele momento!
Mas esse era um pensamento reles, baseado na relatividade. E o argumento de que tudo era permitido porquê tudo era relativo fazia com que se acreditasse que não existia uma verdade absoluta a ser perseguida, no entanto, existiam realidades imutáveis e perenes, e somente estas poderiam elevar o Homem à categoria de deuses.
De imediato, Murilo sentiu o entusiasmo dela esfriar e soube que o momento havia passado. Ele percebeu a mudança e ainda assim, insistiu:
- Não estou te pedindo para me amar, mas para me deixar ama-la.
Seria fácil se fosse possivel se perdoar depois por esta perspectiva simplificada de tudo, mas haviam vidas alternando-se ao redor dela, como se fosse um sol a atrair outros sóis. Sua responsabilidade era grande e já não havia mais tempo e nem espaço para devaneios em suas escolhas.
- Não pense que está sendo fácil para mim, porquê não está.
Murilo viu uma sombra cobrir os olhos cor de esmeralda e uma profunda desolação invadiu seu coração apagando de vez o ímpeto de tê-la para si. Havia nela uma aura de tristeza, talvez um desgosto causado por uma adversidade, e a puxou para o escritório de Théo.
- Venha, vamos conversar. O que está te afligindo?
- Adriano morreu e com ele, os pergaminhos. Mais do que nunca preciso encontrar a Porta da Rocha do Céu. - O encarou expectante, anos atrás ele prometera leva-la até o santuário, mas parecia ter se esquecido disso.
- Contratei mais pesquisadores, mais exploradores, e a maioria afirma que é mais um mito japonês.
Ela sabia que a mitologia japonesa era extremamente complexa, formada por contos espalhados ao longo dos anos, mas ela não era uma lenda, estava ali em carne e osso, sobrevivendo a todos. Então, nada era folclore, fantasia ou mentira.
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Salamandra
RomanceEssa é uma estória permeada de um realismo fantástico, onde tudo pode acontecer. Poderia ser a história de sua vida, ou quase.