O inverno chegou trazendo o frio silencioso, sorrateiro, que soprava sem barulho por debaixo das portas, pelas frestas das janelas, esfriando águas, terras e corações. Nem o céu sempre muito azul e o sol radiante esquentavam as coisas e as pessoas. Como amores que perdiam o fogo e nada se podia fazer para reacende-los, o calor não conseguia se sobrepor ao frio quando era chegado o tempo invernal, porque o Tempo era o senhor da razão e com ele nem Deus podia.
Ela tocou Miloch de leve para não acorda-lo, mas o bastante para perceber que ele devia estar sentindo frio e puxou a coberta para aquece-lo. E virou na cama para calcular o tempo que ainda tinha antes de decidir sobre a sua própria vida ou morte, porque aquele meio termo já não fazia mais sentido.
Murilo estava empenhado na sua função familiar porquê o filho de sua sobrinha logo nasceria. Ademais, as informações sobre a localização da Porta do Céu não passavam de meras suposições, o que o desanimava a tocar aquela empreitada.
Os meses se arrastavam numa monotonia sem igual. As atividades cotidianas eram desempenhadas com um leve desgosto, com uma sensação de tédio, de total desinteresse. Mas ainda que se arrastando, cedo ou tarde um dia o tempo chegava para todos, e chegou para eles, para cada um deles, e Susan não sobreviveu ao filho.
Murilo sofreu o luto para além da primavera, sem gosto pela vida, descobrindo muito aos poucos que o que valia a pena eram as pessoas que valiam a pena. E que acordar e dormir em paz não tinha preço.
Renzo fez o cerimonial antes da cremação e pareceu um soldado capturado pelo inimigo, atônito, confuso, indefeso. Suas razões de mérito haviam desaparecido, restando o maior vazio em seu coração, uma desilusão paralisante. E o antigo adágio entre a cruz e a espada se perfez no dilema sobre quem deveria criar o filho da pianista.
Já Margot só tinha motivos para comemorar, seu filho, seu querido irmão nascera corado e agitado, como se tivesse um sol e um oceano no útero onde crescera.
Haviam todos os motivos para se ser feliz, no entanto, alguns, por carma, e outros por escolha mesmo, enfrentavam grandes adversidades. Mas todos, inclusive os felizes, precisavam crer que tais escolhas foram inevitáveis para continuarem existindo e assim vidas se consumiam em conflito ou se realizavam em paz. Infelizmente, muitos viviam sofrendo mais que sendo felizes.
E como Salamandra havia previsto, Ruy virou filho da irmã e irmão do filho, porquê descobriu-se que o suposto filho de Miloch era, na verdade, filho de Ruy. E Margot abraçou aquelas crianças com todo amor, e fez de Théo um homem feliz.
Salamandra esperou a poeira do tempo se assentar e saiu para resolver suas questões, havia chegado sua hora.
Bateu na porta e esperou até que ela se abrisse. Viu Renzo recuar para que entrasse, e se perguntou porquê continuava remoçando enquanto seus contemporâneos, envelheciam.
Como sempre, ele ofereceu-lhe a melhor cadeira e sentou-se no velho banco de madeira, legado de seu antecessor, talvez num esforço de corrigir os erros pelo sacrifício, ou através do altruísmo conquistar o perdão Divino, já não sabia dizer. Renzo também era um mistério para ela, pois desde que se percebera como pessoa, ele já estava lá, provavelmente muito antes dela.
- Hoje vamos tomar um vinho. - disse ele, sem lhe dar chances de escolha. E não fora sempre assim?
Salamandra nunca antes tomara um vinho com ele e entendeu que aquela conversa era a ultima conversa. Havia a hora de cada momento, e a deles havia chegado.
- A que vamos brindar, padre Renzo?
- Ao começo e ao fim...
As taças se tocaram e tomaram o vinho aos poucos, em silencio, comemorando aquele momento sem qualquer dever ou compromisso. Tinham uma longa trajetória em comum e toda bela história valia uma bela comemoração.
Renzo quebrou o silencio:
- Os melhores vinhos foram cultivados pelos religiosos por séculos em consideração à analogia com o sangue de Cristo. E hoje se usa o sangue dele para libertar os demônios... Já pensou nisso, que usamos dos sinais divinos para justificar nossos pecados? Quando se relativiza tudo, o bem é mal , a verdade é mentira, você é o que não é, e a realidade é uma ilusão. Mas o vinho é o mesmo vinho de todos os tempos. O que mudou, Salamandra?
Renzo tornou a encher as taças, porquê aquela era uma noite especial. Havia protegido Salamandra por toda sua vida, feito o que sua intuição dissera para fazer, e a sacrificara para salva-la, e talvez ela nunca entendesse isso, mas ele sabia que havia cumprido com seu dever.
A ultima grande decisão que tomara fora a respeito do filho de Susan. Murilo queria o sobrinho, mas Salamandra lhe dissera que o filho era de Ruy e que devia ser criado por Margot. Ajoelhou-se até sangrar os joelhos, rezou noite e dia pedindo a Deus um sinal, qualquer sinal de que estaria cumprindo com a promessa feita a Susan, até que teve um sonho...
- Você sabe que o sonho foi que decidiu o destino daquela criança, né? - viu ela assentir com a cabeça, e continuou:
- Eu o vi se desmanchar em água e da poça ressurgir em dois... ele se dividiu, mas ainda era um só... e foi isso que me convenceu do que devia fazer... O exame de paternidade que se seguiu apenas confirmou que estava certo.
Renzo tornou a encher as taças e continuou:
- Nunca desacreditei uma pessoa, porquê todas tem seus motivos e sempre os respeitei, mas você é a prova viva que nada é para sempre e que tudo é para sempre, exatamente como o sonho me mostrou.
Olharam-se nos olhos, sem desvios, por longos instantes:
- Quem é você, Salamandra?
- Ah, padre Renzo, se eu tivesse essa resposta não estaria aqui...
- Pois eu acho que sei quem você é...
Salamandra prendeu a respiração para receber a notícia, e foi quando Renzo viu nela, pela primeira vez, um dragão que o fitou calmo, controlando as baforadas. Ele estava ali, podia vê-lo esperando que ele decifrasse a charada para queima-lo ou não, e duvidou do que sabia. E achou melhor pensar melhor:
- Vamos beber um pouco mais...
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Salamandra
RomanceEssa é uma estória permeada de um realismo fantástico, onde tudo pode acontecer. Poderia ser a história de sua vida, ou quase.