Assim que o olhar perscrutador de Salamandra tentou invadir sua alma embaixo do chorão, Adriano correu para longe dela, para se proteger daquela devassa. Faltava muito pouco para se despir e sucumbir à ela, revelando suas entranhas sem qualquer disfarce, mas o tempo dessa entrega não havia chegado. E antes do tempo certo qualquer revelação era prematura. E ele, a essa altura da vida, não podia se permitir qualquer erro. É que sua salvação, seu pedacinho no Céu dependia desse striptease espiritual consentido.
Entrou no salão e deparou com Miloch, e viu ali a providência divina para resguardar sua única esperança de obter o consentimento de Deus. Aproximando-se dele, disse, a meia voz:
- Aquele que julga estar firme, cuide-se para que não caia!
Afastou-se dele e avistando Renzo foi ao seu encontro, acompanhado de perto pela mosca. Ela sobrevoava sua cabeça silenciosamente, antes de arriscar um pouso.
Renzo viu Adriano gesticular sem parar enquanto se aproximava dele.
- Está tudo bem com o senhor?
- Estaria, se não fosse essa mosca!
- Que mosca?
- Essa...
Então, olhando para Renzo e para sua expressão intrigada, Adriano entendeu que só ele via o inseto repulsivo. E perplexo com a descoberta de que moscas também tinham espectros, se perguntou como se livraria daquela criatura incorpórea.
Também deixando o jardim, Salamandra adentrou no salão iluminado, decorado com ikebanas de flores raras e animado por pessoas loquazes, que conversavam ou cantavam enquanto dançavam ao som de melodias extemporâneas.
O ambiente retratava a personalidade do anfitrião, tudo na justa medida. Murilo sempre demonstrava ter menos do que tinha, porque pessoas inteligentes não afrontavam outras, apesar de que todos ali deviam compartilhar de igual riqueza, concluiu, observando o brilho dos diamantes circulantes; os homens demonstravam quem eram ornando suas mulheres.
Seus olhos varreram o salão buscando a imagem querida, que enchia sua vida com doces momentos. Onde estava Miloch? Fora novamente capturado pelo perfume?
Viu Adriano se debater, tentando inutilmente afastar a mosca e compadeceu-se dele. No decorrer de suas entrevistas com ele foi percebendo que toda a arrogância e orgulho do passado foram afrouxando, cedendo espaço para um religioso mais humano, que também sofria com conflitos e dúvidas. E essa face mais frágil dele a comoveu ao ponto de perder o medo que tinha dele. Agora ela sabia que aquele baluarte da fé também fraquejava. E concluiu que aquele homem já enfrentava um grande dilema para ainda ter que lutar contra o espirito de um inseto inconveniente. Por isso, aproximou-se dele e disse:
- Fique quieto! - e tão rápida quanto um raio, bateu com a mão no seu rosto dele e matou a mosca.
- O que você fez? - Perguntou, atônito.
- Matei a mosca. - Disse, piscando o olho e afastando-se.
Virou-se para Renzo e viu que ele não parecia surpreso com a leve bofetada que recebera dela, ou fingia não ter visto, e convidou-o para um drinque:
- Quero fazer um brinde - pegou duas taças da bandeja de um garçom que passava e uma delas entregou ao padre. E disse, solenemente, tocando sua taça na de Renzo:
- A nós, por termos a coragem de sermos quem somos!
Salamandra também se sentiu bem em ter livrado o bispo daquele inconveniente. Mas agora era ela que precisava reencontrar a paz de espirito e por isso buscou Miloch entre tantos. Era ele seu paraíso, com quem era feliz e se sentia segura.
Foi se esgueirando entre os convidados, até que seu olfato a paralisou. Esqueceu Miloch, para se concentrar em uma outra caçada. Olhou ao redor, atenta, curiosa, ja se preparando para o encontro.
E foi então que a musica parou, e ouviu Murilo convidar o discreto padre para abençoar a casa. E o cheiro do pecado se diluiu novamente. E sem vestígios dele, teve que desistir dos seus planos.
Salamandra viu quando Renzo declinou do convite a favor de Adriano, e quando Murilo, agradecendo a presença ilustre do bispo, declarou que fazia questão que aquela casa fosse abençoada pelo amigo de longa data.
E Renzo, sem saída, e para evitar um constrangimento maior para seu superior, fez o sinal da cruz e orou o Pai Nosso.
Satisfeito, Murilo abraçou o padre e agradeceu, dizendo que tinha certeza que Renzo gozava dos favores de Deus e que, portanto, seu novo lar estaria protegido. E começou a bater palmas, seguido por todos os presentes, exceto por Miloch que não conseguia desviar os olhos de uma escultura sobre um console. O que era aquilo agora? Não estava bêbado, porque aquele ser que via agora petrificado sobre um móvel consumira os uísques, vodkas, gins bebidos por ele. Então, ele existia de fato!
Sentiu um leve toque no ombro e deu um pulo, esperando rever aquela estranha criatura.
- Calma... sou eu... - disse Salamandra.
Miloch a viu admirar a imponente escultura e pareceu-lhe que ela também o conhecia. Ali, a sua frente, estava a única pessoa que talvez pudesse decifrar aquele enigma! E perguntou:
- Quem é ele?
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Salamandra
RomanceEssa é uma estória permeada de um realismo fantástico, onde tudo pode acontecer. Poderia ser a história de sua vida, ou quase.