Capítulo 41

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Adriano celebrou a missa e se dirigiu para seu gabinete, mas dessa vez seu sentimento foi diferente. O que antes era um ritual significativo, lhe pareceu desprovido de sentimento; uma repetição mecânica, sem sentido. De repente, o homem que havia nele parecia subjugar o padre e ele já não conseguia conciliar os dois como fizera ao longo de décadas. O que faria de si, de sua vida doravante? O prazer solitário, que raramente extraía de si mesmo, já não o satisfazia. Que futuro teria se Deus decidisse castigá-lo com mais alguns anos de vida enclausurada?
Seus olhos foram atraídos para o crucifixo. Então, o religioso de anos, formatado e impoluto, tomou-lhe o ser e ele olhou para a cruz cheio de remorso. Naquele instante já não importava o que lhe afligia e era o que lhe bastava, o próprio sofrimento nada significava. E era disso que necessitava para se sentir abençoado.
Se sentiu bem, revigorado, talvez, um novo padre. Rezou em silencio, como sempre fazia, agradecendo e, acima de tudo, pedindo perdão por suas fraquezas; não tinha direito à elas.
Aprendera ao longo dos anos a esperar o desabafo de quem o procurava, a confissão de angústias, que na maioria dos casos nem eram pecados. Ou, pelo menos ele, na sua experiência de vida sacerdotal achava que não eram. Viveu bem com essa certeza por longos anos. E foi então que se surpreendeu duvidando de tudo! Seriam pecados as vicissitudes? Se fossem, Deus seria muito cruel. Ou, talvez, Deus nem existisse de fato. Mas se Deus não existia, quem estava por detrás de Salamandra? Quem? E se Deus existisse, mas não fosse Ele a operar aquele milagre, quem o estaria realizando? Teria o Diabo tanto poder quanto Deus? Lera num manuscrito antigo que o Bem e o Mal eram faces da mesma moeda. Deus era absoluto ou não era, dono de toda Ordem ou de nenhuma, e havia nisso uma lógica irretocável.
A lembrança do manuscrito trouxe a desordem para seu coração e foi com muita dificuldade que conseguiu levantar timidamente os olhos para o crucifixo e murmurar:
- Eu preciso me confessar, contar-Lhe um segredo que guardo há algum tempo, mas não sei como terei coragem para tanto. – E rompeu em lágrimas.
Sentiu um impulso incontrolável de contar a Ele o que se passava em seu coração. Tinha um desejo imenso de libertar sua alma dos pensamentos que vinham atormentando-o, tirando-lhe o sono. Precisava se libertar daquela maldição. Mas como um acólito ficou em silêncio, com os olhos fixos no crucifixo, aguardando o momento Dele fazer Sua pregação. Mas somente seus pensamentos ecoaram no recinto silencioso; Ele o havia abandonado.
Queria esquecer seus dilemas e subjugar o homem cheio de dúvidas para reencontrar a certeza de sua missão na vida. O que teriam as pessoas para desabafar que fosse mais sério do que o próprio desabafo dele? Era ele que precisava de um confessor!
Precisava encontrar uma saída para a sinuca de bico em que se encontrava. Primeiro tinha que descobrir onde surgira a dúvida original, porque aquele conflito todo tinha surgido em algum momento de sua existência sem graça. Em qual instante de sua existência a insatisfação plantara em sua alma tamanha semente fecunda? Era urgente identificar esse instante que separou ele dele mesmo, o homem do padre, o padre do homem.
Do padre que era, que conhecia, queria viver e morrer como tal. Entretanto, do homem que também era quase nada sabia além de prazeres solitários. E era dessa metade que sentia falta agora no fim da vida. Sentia inveja dos homens comuns que viviam sem temer Deus ou o diabo, que apenas viviam pura e simplesmente.
        E pensou nela e que precisava de sua resposta para morrer em paz, para cumprir sua missão como homem e, sobretudo, para coroar sua vida pastoral. Somente ela poderia salvá-lo daquele calvário. Quanta ironia havia nessa dependência!
Batidas na porta o tiraram de suas divagações. Viu a pesada porta ser aberta e Salamandra entrar. Que enigma difícil de ser decifrado era aquele, concluiu, recebendo-a com um largo sorriso no rosto redondo.
Ela não pode deixar de observar o inesperado sorriso no rosto sempre tão sério. No entanto, os olhos continuavam guardando o duro brilho de pedra preciosa. Pareceu-lhe mais magro, talvez por causa da barba não feita, ou de noites insones. O que atormentava aquele homem sempre tão seguro de si? Não se parecia mais consigo mesmo. Tentou penetrar na sua mente, mas não conseguiu. Concluiu que o ponto forte daquela personalidade era a fé, que parecia posta em dúvida, e essa devia ser a sua cruz.
As quatro principais faculdades da alma humana eram a coragem, a sabedoria, o amor e a confiança em Deus, ou seja, a fé. Quando a coragem atuava negativamente a pessoa se tornava violenta. A sabedoria usada incorretamente era astúcia, e criava infelicidade. Já o amor era compaixão e desejo de fazer as pessoas felizes. Mas era a confiança em Deus que criava fé. O ideal seria um perfeito equilíbrio destas quatro faculdades, mas normalmente as pessoas tinham bem desenvolvida apenas uma, e o ponto forte daquela personalidade sempre fora a fé, que parecia agora posta em dúvida. E um homem sem fé era facilmente manipulado pelo Mal.
Sentiu um calafrio ao calcular a extensão do mal que aquele homem com sua influência poderia causar em nome do pseudo bem.

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