Capítulo 82

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       Salamandra percorreu o frio corredor em direção ao gabinete de Adriano relembrando o dia que ali caminhara após anos de sossego ao lado de Miloch. Naquele dia estava com medo, mas agora, não! Agora sentia que estava em pé de igualdade com ele.
       Abriu a pesada porta de madeira maciça com vontade, segura de si, do que sabia que sabia. Mas ao se deparar com ele vacilou porquê, estupefata, viu uma grande sombra envolvê-lo. Que espectro seria aquele senão o da morte? Aquela visão tenebrosa, desarmou-lhe e perdeu toda energia. Entrou no austero gabinete, constrita, desejando novamente não estar ali, com ele.
       Adriano, indiferente às impressões de Salamandra, a convidou para entrar, sentar e ficar à vontade.
       Depois de constatar o viço de sua pele, reconheceu:
       - Você me parece tão bem! Tal qual uma flor que não se cansa de desabrochar! Eu, no entanto, vou murchando sem querer, inevitavelmente.
       O cansaço que percebeu em sua voz treinada para pregações não o impediu de continuar:
        - Ignorei as denominadas divindades, vivi sobre fortes restrições, aprisionado pelos mandamentos e sem nenhuma liberdade. Aprendi a me afastar de pessoas e situações que ameaçassem a minha paz interior e meus valores. E esse distanciamento são como feridas abertas, incuráveis. O que você acha disso?
         Salamandra o encarou consternada, e desabafou:
         - Eu pedi desculpas sem ter culpa, abaixei a cabeça tendo razão, fiz pelos outros o que nunca fizeram por mim. Perdi a conta das vezes em que coloquei a felicidade dos outros acima da minha. E sobrevivi. O senhor também sobreviverá.
         - Mas você sobreviveu porque aceitou o que vinha como vinha! Mas eu, como posso sobreviver se estou a duvidar de tudo?
         - O senhor sempre foi uma pessoa segura de si, sempre defendeu aquilo em que acreditava e nunca permitiu que duvidassem de sua forma de agir e pensar. O que foi que mudou?
         - Tudo! Tudo mudou! Estou a duvidar dos dogmas que baseiam minha fé! Às vezes tenho uma opinião formada outras, não. E já não quero convencer as pessoas que discordam de mim, mas ouvi-las. Não acho mais que pelo fato de não concordarem comigo e por acharem que podem interferir em minhas escolhas, estejam erradas, ou que estejam dominadas pelo mal. Já algum tempo penso que o que elas tem em mente também tem importância.
         Ela sabia que tudo tinha importância, porquê tudo que viera para enfraquecê-la, a fortaleceu. O que viera para apagá-la a acendeu e ao invés de derrubá-la, a levantou, e ao invés de amaldiçoa-la, a abençoou.
         - Bispo Adriano, uma vida não questionada não merece ser vivida.
         Adriano repetiu aquelas palavras com calma, refletindo que se Platão se enganara sobre a localização de Atlantida, também poderia estar enganado a respeito da vida. Mas não queria filosofar àquela altura de sua vida, seu dilema reclamava uma solução premente. E sem mais delongas, perguntou:
         - Como você pode sobreviver a tantos dissabores sem mergulhar no inferno?
         Salamandra o fitou por um breve instante, e disse:
         - Quem me vigia não dorme.
         Ele desviou os olhos dela para fixa- los no jardim. Anos a fio cuidara daquelas plantas, algumas floriam e outras, não. Mas as amava igualmente. E agora a angústia do seu peito era tão atroz ao ponto de não sentir felicidade por ver sua semeadura vingar. Por que aquela insatisfação não o deixava em paz?
         Se Adriano tivesse o poder da visão espiritual veria um dragão dourado a observá-lo, respirando abafado para conter o fogo e o calor que acabariam com ele de vez. Mas ele era um bispo, e não acreditava em quimeras.
         - Eu devia me encontrar no meu melhor momento, porquê estou sem muitos amigos; na minha vida só quem era necessário permaneceu. A maturidade veio, parei de sentir o peso de muitas coisas desnecessárias. O tempo muda tudo! Mas sigo lutando por Deus e por isso devia estar ótimo! Mas não estou...
         Salamandra ouvia aquela confissão pensando que crescer doía, mudar doía também. Mas nada era mais doloroso do que permanecer preso a um lugar onde não se era feliz, porquê não existia nada neste mundo que fosse destituído de sabor. Se este fosse excluído da vida, esta se tornaria insípida e o ser humano, certamente, perderia a vontade de viver. Daí adivinha o apego do homem à vida, do deleite proporcionado pelo seu encanto: as coisas, o ser humano, a vida cotidiana, e a fé, sobretudo a fé, possuíam sabor.
         E este era justamente o ideal da fé, criar um contínuo estado de tranquilidade em que o ser humano vivesse com alegria e prazer. Então, ele perceberia a beleza da Natureza expressa nas flores, nas aves, na brisa, na lua, no canto dos pássaros, nas águas e nas montanhas como dádivas de Deus para confortá-lo. Mas a fé que sustentara àquele homem parecia agora, estranhamente, suscitar-lhe angústia.
        Perguntou-lhe o que o afligia, mas ele se negou a falar com um menear de cabeça. Então disse-lhe, com compaixão:
        - Eu desejo que você se cure daquilo que não conta para ninguém.
        Adriano a olhou de soslaio imaginando qual seria sua reação à estranha convocação que estava prestes a lhe fazer.
          Dois toques na porta o trouxe de volta à realidade. De onde estava disse, alteando a voz:
          - Entre, Renzo!

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