Capítulo 59

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Renzo, da sacada que dava para o jardim dos chorões observava, discretamente, seu superior que agia como um ninja, ao mesmo tempo que tentava afastar uma mosca que o perseguia implacavelmente. Era intrigante aquele comportamento dele, porquê sempre fora um homem tão convicto que partilhava da intimidade divina! Então, qual ilusão estaria destruindo aquele castelo construído sobre rochas? Porque Adriano era uma fortaleza de fé. Ele conhecia as Escrituras como nenhum outro, e as cumpria com diligência irrepreensível. E agora o via movimentar-se por entre as árvores como um felino, dotado de um propósito, mas destituído de razão. E por mais que ponderasse não conseguia induzir e nem deduzir nada daquela atitude estranha, para não dizer, ridícula.
Havia um tempo na vida dos homens, de todos eles, que o enfrentamento de questões não resolvidas ressurgia exigindo uma solução. Era aquele exato momento em que o muro surgia e não se podia mais seguir em frente, ou se virava para a direita ou para a esquerda, e ficar em cima dele, jamais. Era a maturidade galopante pisoteando a pureza juvenil. Mas o muro, aparentemente tão cruel, era libertador, no entanto, era preciso tomar uma direção para se descobrir isso.
Havia esse tempo na vida de todos, para alguns chegava cedo, para outros, tarde demais. Mas quando esse tempo chegava, nada se podia fazer além de decidir o rumo. Para Adriano, que era a fortaleza em pessoa, o muro era uma muralha, desafiando-o a tomar uma decisão de vida ou morte. E estava defronte dele, hesitante quanto ao caminho a tomar.
No jardim, Adriano lutava contra a mosca indesejável. Como era possível que houvesse uma mosca àquela hora, naquele lugar e atrás dele, só dele! Lembrou-se de Salamandra dizendo, numa tarde excepcionalmente quente e povoada de insetos que eles eram necessários para carregar e transmitir germes para limpar o homem, porque o ser humano estava sujo. E que quando os homens se tornassem limpos, todos eles desapareceriam. No entanto, ele tinha passado o dia se preparando para aquela festa. Tinha feito a barba e cortado os cabelos, depois cuidara das unhas, e tomara um banho caprichado. Estava limpo, então, aquela mosca não devia estar perseguindo-o! E, contrariado, concluiu que eram esses vacilos dela que o impediam de tomar sua decisão final. Precisava da confirmação derradeira da divindade dela para finalizar sua existência com chave de ouro. Por isso não podia se dar ao luxo de ignorá-la. Desde o momento em que sua alma fora corrompida por aquela dúvida que o seu mundo tão previsível começou a desmoronar. E agora só ela podia reerguê-lo para si e para Deus.
Adriano ouviu sorrisos e tentou entender o que diziam, mas o som que chegava até ele era inaudível porque a brisa que soprava carregava o som para longe dele. Era preciso mudar o curso da história e, por isso, abandonou o posto, deslocando-se para ficar a favor do vento. E então pode ouví-la dizer para o encantador de sereias que os arco-íris se deviam aos vapores de água que, por serem densos, refletiam a luz do sol, e que por isso não tinham nenhum significado particularmente especial. Mas sentiu suas têmporas latejarem quando a ouviu mencionar o aspecto espiritual das auroras boreais:
- Já em relação às auroras boreais, a minha opinião é que naquela região a energia espiritual é abundante. E quando esta energia está especialmente forte, a luz do Sol é refletida nela, então qualquer pessoa pode enxergar esse aspecto do mundo invisível.
E a pressão aumentou quando ouviu aquela voz mansa, mas sempre tão pungente, dizer para o seu interlocutor:
- Não posso garantir o que vou dizer, mas garanto que vou alimentar suas fantasias. Normalmente quem cruza essas dimensões afirma a existência de um túnel. Sem corpo físico somos energia. E morrem milhões de pessoas por dia. E se há um túnel, para onde as almas se dirigem, talvez elas se reúnam num único lugar para seguirem na viagem astral.
- E a aurora boreal é o túnel... e o que vemos são inalações dos espíritos. – Concluiu, Ruy, sentindo que encontrara uma mulher extraordinária, na medida certa para ele.
Não era nem questão de beleza, pois buscava mais que um corpo, ele precisava era de uma alma gêmea que compartilhasse do encantamento que percebia no mundo das ideias.
Aproximou-se dela, tocando delicadamente sua face com os dedos. Viu ela sorrir, aceitando aquele gesto com naturalidade. E com voz embargada de emoção, declarou:
- Encontrei a senhora do meu destino.
Salamandra sentiu-se envolvida por um espiral de luz e bem estar, e viu, estupefata, sua aura se estender infinitamente. Soube naquele instante precioso que era mais do que julgava ser e que, apesar da sua aparente normalidade, era sobrenatural. Olhou para Ruy, e percebeu que a aura dele também brilhava intensamente, denunciando uma alma nobre, dotada de grande merecimento e proteção. E sorriu feliz porque talvez tivesse encontrado um Yamato.
Então o alarme soou para Adriano, que se precipitou para salvar sua redentora. Não permitiria que aquele homem profanasse seu repositório de esperança. Abandonou o esconderijo e rapidamente se aproximou do casal, quebrando o clima de intimidade entre eles ao dizer:
- Ora, ora, quem vemos aqui, sob este majestoso chorão: a bela e a fera!
Ruy se assustou quando viu o padre surgir do nada; que homem estranho aquele! Já Salamandra encarou Adriano com um olhar enigmático, que fez o sangue dele congelar. Era um olhar que desvelava segredos e pecados, que Adriano não conseguiu enfrentar. Sentindo-se desnudado por ela, deu uma desculpa qualquer e se afastou. Era um soldado de Deus derrotado e falido, sem forças sequer para combater a sua derradeira batalha.
Viram-no se afastar cabisbaixo, com passos largos e ligeiros.
- Que homem mais inoportuno! – afirmou Ruy, voltando sua atenção para ela.
Salamandra lembrou-se do passado, de quem ele fora e de quem ele era agora e disse:
- Ele está entre a cruz e a espada... - E concluiu, antes de se afastar de Ruy e do chorão que havia perdido toda a sua magia:
- Eu não queria estar na pele dele.

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