Capítulo 46

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Adriano acordou sentindo-se cansado, como se não tivesse dormido a noite toda. E a culpa era daquela lâmpada acesa, pois desde que passara a dormir com a luz acesa que despertava indisposto, como se viver fosse um pesado fardo. Talvez bastassem as flores e sorrir para afastar o mal, pensou, levantando-se. Discutiria o problema com Salamandra.
Decidiu escovar os dentes no banho, para evitar o espelho e a impressão desgostosa que tinha de si nas primeiras horas da manhã. Estava cada dia mais velho e feio, isso era inegável. A decadência em vida era o destino para quem não morresse logo. E quem queria morrer jovem? Ninguém! Todos preferiam a decrepitude, o declínio dos sentidos e o apogeu da carreira. Então, a velhice era inevitável; menos para ela. 
Como podia Salamandra ter remoçado sem morrer? Era realmente um mistério! Refletiu se gostaria de voltar no tempo assim como ela, solitariamente. Porque ela já existia quando ele nasceu. Caso contrário, não teria como ela saber de detalhes de sua vida, tão íntimos e particulares, minúcias de uma existência discreta e insignificante. 
Ficou imóvel sob a ducha, deixando a água quente escorrer por seu corpo. O banho matinal, o fausto café da manhã, seu jardim verdejante e florido por onde passeava todas as manhãs, os sapatos sempre polidos, o bom vinho e a leitura diária eram os prazeres mundanos que angariara ao longo da vida. Nunca tivera outros prazeres além desses, porque cuidara mais da alma do que do corpo. Quanto ao trabalho pastoral era mais um sacrifício que um prazer, um dever cumprido, uma exigência divina para ter a alma salva no Apocalipse. E estava tudo perfeito até que numa noite, aproveitando que ela estava num estado alterado de consciência, entregou-lhe os pergaminhos pedindo que os lesse. E ela decifrou parte da mensagem contida naquelas peles de caprino. E sua tranquila existência desapareceu num toque de mágica: no fundo de cada ser já havia sua sentença.
Lá estava escrito que a Terra jamais seria destruída, porque o temido Juízo Final era um acontecimento restrito a alma humana. Era nessa dimensão, do mundo espiritual, que ocorreria essa seleção natural entre os sobreviventes e os aniquilados. Entendeu, também, que não havia um juiz do outro lado da vida porque era desnecessário, visto que cada alma julgaria a si mesma baseando-se num código inexpugnável, o livre arbítrio. Seu entendimento de Deus mudou, Ele era a Lei, e não um julgador dos pecados humanos. Ele era grandioso demais para se ocupar de tarefa tão insignificante.
Esperou que ela fizesse a revelação mais esperada, sobre quem ela era, mas o documento secular estava incompleto. Decepcionado, deixou o remoto convento e Salamandra, ainda em transe.
Viajou de volta para casa pensando nas incongruências que cercavam aquele ser atemporal. Ao chegar, tornou a guardar as frágeis folhas no cofre. Daquela descoberta em diante o rumo dos acontecimentos começaram a fugir ao seu controle e isso minava suas esperanças de fazer o que queria fazer e não ir parar no Inferno.
Saiu do banho e finalmente enfrentou o espelho e concluiu que a barba por fazer era a causa daquele aspecto cansado e envelhecido. Deu um telefonema e marcou um horário para o barbeiro. Depois se vestiu e saiu do quarto, se dirigindo para a pequena capela onde fazia suas orações matinais.
Ajoelhou-se em frente do crucifixo. Observou detalhadamente o objeto e o que ele simbolizava e concluiu, inesperadamente, que não era a verdadeira imagem de Jesus. Aquele homem crucificado, de semblante tão triste e derrotado não correspondia ao seu salvador. Aquela imagem de sofrimento podia continuar a sensibilizar milhões de pessoas, mas não mais a ele. Porque ele agora sabia que Jesus fora um homem esperto e influente, caso contrário não teria causado tanta perturbação e nem teria sido alvo de tamanha perseguição por parte dos seus conterrâneos.
Mas como assumir isso sem ofender a fé nele? Os homens precisavam acreditar que seus pecados tinham sido expurgados eternamente por ele e que se fossem fiéis ao seu redentor ao morrerem habitariam o paraíso, ainda que continuassem pecando. O homem comum, que não tinha verdadeira compreensão precisava disso para não enlouquecer.
Inesperadamente o chão sob seus pés tremeu e o crucifixo despencou da parede caindo ruidosamente no chão.
Adriano deu um pulo e correu para recolher o objeto e ao segurá-lo nas mãos sentiu vontade de chorar e chorou. Depois de chorar muito, pediu perdão. Limpou-o cuidadosamente e tornou a pendurá-lo. Abaixou a cabeça e fez uma oração fervorosa. Fosse um sinal da ira de Deus ou não, ou da sua falta de proteção ou não, pouco importava, ele só não queria cometer erros. E se arrependeu de ser quem agora era, mas o arrependimento durou muito pouco, quase nada. Estava muito cansado para sentir qualquer coisa além de saudades de si mesmo.
Caminhava com os olhos fixos nos sapatos engraxados, sem contemplar o jardim ao seu redor. Quando queria pensar era assim que andava, sem distrair-se. Os primeiros raios do sol aqueceram seu corpo e fechou os olhos para sentir melhor o toque do seu Criador, porque agora sabia que o Sol era o corpo material de Deus.
Estremeceu ao lembrar que as energias do sol, a das manchas solares no mundo espiritual, ficariam cada vez mais fortes, julgando com mais severidade os erros da humanidade. E sua angústia era justamente essa, ele sabia a sua sentença de agora, mas não sabia a sua pena depois de fazer o que se sentia impelido a fazer.
Sentou-se sob um caramanchão florido para tomar folego. Quando andava um pouco mais ficava ofegante, e precisava descansar. Seu corpo precisava de pausas que seu espirito atento e curioso, se recusava a ter. A morte física não lhe preocupava, tinha certeza que já estavam definidos o dia, o mês e o ano em que uma pessoa iria morrer ou sofrer grandes acidentes ou desastres. Se tivesse proteção de Deus conseguiria transformar os grandes infortúnios em pequenos.
Salamandra lhe explicara que os sonhos premonitórios eram avisos de acontecimentos futuros feitos pelo guardião de cada pessoa. Estes espíritos celestiais podiam nos mostrar através dos fatos ou por meio de alegorias o que estava por nos acontecer. E dentre tantos símbolos sonhar com a própria morte era bom, pois significa que o atual eu estava morrendo para dar vida a um novo eu. E que este tipo de sonho ocorria muito com pessoas devotadas. No entanto, ele que sempre fora um ser devotado, nunca sonhara com a própria morte e isso lhe causava um grande desgosto. Ou não era suficientemente devotado, ou seu guardião não era um espirito muito eficiente.
Um emissário aproximou-se e entregou-lhe um envelope, dizendo:
- Do Padre Renzo. – e se afastou.
Adriano abriu o envelope e sorriu de leve, pensando que aquele era um padre obediente, servil e confiável.

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