Capítulo 97

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Saiu reflexiva do encontro com Renzo. O que estava acontecendo com a criatura que fora obrigada a se guardar do mundo? Que se conformara com a indiferença, com a tristeza do isolamento, que não queria ficar onde estava, mas que não podia ir embora?
E fora esquecida por muito tempo e na solidão, sem ter ninguém, espíritos seculares também aprisionados naquele mausoléu, resolveram recepciona-la. E foi então que aprendera com eles todas as línguas para ler os segredos da Gênesis. E descobriu que tudo que existia começara com um lamaçal efervescente e fecundo.
Viu nascer seres gigantes do barro primordial para compacta-lo com seu peso e desaparecer para que novos seres mais leves, pudessem surgir. Depois de milênios dessa mutação genética, onde os que pereciam ressurgiam aperfeiçoados, Deus desceu à Terra, tocou Sua criação mais semelhante à Ele e os primeiros Homens surgiram, e juntos foram evoluindo. Ela viu cenas assombrosas e belas do Criador; Deus era o Reino, a Glória e o Poder por todos os séculos.
         Ah, como gostaria de sair e falar, ensinar para as pessoas que não havia o pecado, porquê Deus era Tudo, era o Bem e também o Mal. E que os bons e os maus eram igualmente filhos Dele e que os amava incondicionalmente. E que o ódio era a única construção exclusivamente humana.
Algumas daquelas almas enclausuradas no convento eram brincalhonas, outras iludidas, mas as evoluídas queriam liberta-la, no entanto, uma dor lhe prendia ao mundo dos homens; eram seus dentes que nasciam. Foi então que entendeu que a dor aprisionava a alma, e que para se morrer era preciso deixar de sofrer.
         E conforme os dias e as noites iam passando foi percebendo um alvoroço entre seus amigos invisíveis, e um a um se afastou, até que se viu absolutamente sozinha de novo. Então, Renzo chegou para resgata-la. Por anos não pisou nas folhas secas outonais, não sentiu o frio invernal, não viu as flores primaveris desabrocharem, mas o sol daquela manhã de verão aqueceu seus ossos. E quis viver como nunca antes.
De volta à realidade, Salamandra sacudiu a cabeça para afastar as lembranças e os pensamentos intrigantes, e se dirigiu para casa. Não fazia tanto tempo assim que não via Miloch, mas só de pensar nele seu coração batia como o de qualquer mortal. E gostava daquela sensação de desvario que só com ele experimentava.
O grande erro do amor era tentar encontrar no outro virtudes que ele não tinha, negligenciando aquelas que ele possuía. Era claro que haviam seres infinitamente mais nobres e mais perfeitos, mas isso não importava quando se gostava do torto e errado.
Miloch sempre a amara muito mais que merecia, do que tinha direito de exigir ou mesmo de esperar dele. E estar com ele a absorvia por inteiro, ao ponto de despertar-lhe sensações físicas, emoções, ideias que sempre eram retomadas quando se encontravam.
Só existia um ponto no que se sentia superior à ele e ao mais comum dos homens, sua coragem de enfrentar a morte, coisa que nenhuma pessoa ousaria fazer, nem ele. No entanto, agora morrer parecia-lhe o pior dos desastres, uma quase tortura. Porquê compreendia agora que morrer era a mais árdua de todas as batalhas que um ser vivo tinha que enfrentar, e já não lhe causava nenhuma alegria se retirar do mundo. E essa era uma conclusão imprevista!
Sentiu-se desesperada, numa emboscada, onde todas as providências tomadas não evitariam o choque, o fim de seus planos e sonhos.
Girou a chave na fechadura e a porta se abriu.
A certeza de poder estar com ele causou-lhe uma euforia encorajadora. Sentou-se ao lado dele, e viu a taça de vinho que ele havia preparado para ela e tomou toda, como se o mundo fosse se acabar naquele instante. Viu ele despejar mais vinho na sua taça, como se pudesse apagar os pensamentos menores, justamente aqueles que corroíam a aquiescência, e novamente virou a taça ate a ultima gota para mostrar-lhe que faria o que ele quisesse.
Então viu a cobiça estreitar os olhos dele, o engolir em seco e o resfolegar, sinais que o bicho deixava para depois as questões do homem.
Levantou-se, sentou-se sobre ele e deixou o resto por conta da imaginação dele.

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