Salamandra viu a mensagem de Miloch avisando-a de que tomaria um drinque com um cliente. Então preparou um Martini e foi para a varanda. E como sempre acontecia quando se encontrava sozinha e mergulhada no silêncio, resvalou para o passado.
De tudo que se lembrava, um dia era o mais representativo, o mais emblemático, aquele em que fora batizada pelo fogo como Salamandra.
Gostava de revisitar este dia para ressignifica-lo. E lhe pareceu ouvir novamente os gritos de "morte à Velha, e sentir o cheiro de gasolina, e rever o momento exato da explosão e do clarão que a engoliu como uma língua ardente. E de pensar com grande alívio que seu tormento havia chegado ao fim.
Viu novamente tudo queimar a sua volta. Viu novamente as pessoas através do fogo, imóveis, na espera de nada verem além de cinzas, e um carvão remanescente aqui e acolá.
E tornou a ouvir o estrondo que rompeu o silêncio e a ver os rostos espantados de seus espectadores quando viram surgir das cinzas a figura incólume da estranha criatura que era ela. E lá estava ela, gigante, em meio aos restos incandescentes e enegrecidos de seu mundo. E diante do silêncio absoluto, de pessoas estarrecidas e daquele estranho instante em que não se sabe quem está vivo e quem não está, um grito ecoou para os vivos e para os mortos:
- A casa do doutor está pegando fogo!
E todos se voltaram para ela, avaliando aquele ser que ressurgira do inferno ardente. E se viu arrastada pela multidão morro abaixo, até pararem em frente de uma casa quase consumida pelo fogo. E se sentiu empurrada para as labaredas vulcânicas.
Em meio ao alarido histérico ouviu crianças chorando e por isso adentrou naquela tempestade de fogo. Viu dois berços, um deles tomado pelo fogo, e no outro uma criança se debatendo. A tirou dali, pensando que ela merecia viver. Não havia tempo para salvar a outra, que já parecia conformada com seu destino.
Saiu das chamas com aquele ser nos braços, sem entender muito bem o que fizera e nem o que estava acontecendo. Viu Renzo se aproximar dela e aceitar a criança que ela lhe entregava.
E de repente se viu erguida do chão e carregada pelas ruas da cidade pela pequena multidão. As pessoas gritavam "viva, Salamandra", dominadas por uma estranha excitação. Antes, igualmente exaltados gritavam "morte à Velha", porquê até então ela era a personificação do mal. Antes era uma bruxa, a maldição em pessoa e em menos de uma hora era aclamada como um ser benigno, com poderes para operar milagres.
Adentraram na igreja e quando a colocaram de volta no chão, já dentro da nave de onde saíra correndo perseguida por todos eles, fizeram uma reverência e o sinal da cruz, exatamente como faziam diante dos santos.
Alguém tirou o casaco e respeitosamente cobriu o seu corpo esquelético. Então mergulharam num silêncio respeitoso, observando-a, como se esperassem algum gesto ou palavra profética.
Renzo que vinha atrás da multidão com a criança nos braços entrou na igreja e parou estupefato diante da cena.
- O que está acontecendo aqui? - perguntou em voz alta.
Rostos assustados se viraram para a entrada da igreja, e depararam com um padre enfurecido.
- Vão para casa! Por hoje chega! Vocês já causaram muita confusão!
Mas ninguém se moveu. Desviaram os olhos do padre tornando a fixá-los nela na espera de que lhes dissesse o que deveriam fazer.
Renzo atravessou a nave abrindo caminho entre os presentes, se aproximou dela e disse baixinho:
- Peça para eles irem para suas casas.
Obedientemente, disse:
- Vão embora!
E um a um, silenciosamente, saíram da igreja.
Então lembrou que Renzo a conduzira para um pequeno quarto na casa paroquial, dizendo:
- Vou deixá-la dormir aqui, desde que me prometa ficar quieta. Posso confiar em você? – e se deitara encolhida na sua insignificância.
Ela ainda não sabia quem era e do poder que possuía.
Daquela criança nunca mais ouvira falar, até aquele dia na sacristia do padre Renzo, quando ele o apresentou, um homem tão especial que a impressionara, e só muito tempo depois soube ser ele a criança que salvara de morrer queimada.
Sentiu-se traída, depois horrorizada para, enfim, se conformar com o inevitável.
E Renzo lhe assegurara que Miloch era o enviado, aquele que tornaria possível concluir com êxito sua missão nesta vida. Mas aquela explicação simplista não lhe trazia consolo. Queria saber o que queria dizer tudo aquilo. O que era sua missão? Qual papel Miloch tinha nela? E o que Renzo sabia que ela não sabia?
Sua vida era um mistério, como os tesouros guardados há muito tempo. E apesar desse tesouro pertencer a ela, ninguém que o detinha parecia querer devolvê-lo!
Lembrou dos pergaminhos e da sensação de que a sua existência poderia ser explicada por eles, ou pelo menos parte dela. E que tais revelações afastariam a cortina que a impedia de enxergar com clareza para, finalmente, aquietar sua alma.
Então, a expressão enigmática de Adriano surgiu a sua frente. Havia uma barganha nos encontros com o bispo, ela pressentia isso, uma troca de favores; ele queria alguma coisa dela e ela, na hora certa, poderia arrancar dele o que quisesse. Era um jogo de interesses, entre poderes aparentemente divergentes, mas que ao final convergiriam inevitavelmente para o mesmo fim.
Estremeceu ligeiramente quando sentiu alguém tocar sua mão pedindo que acordasse. Teria cochilado sem perceber, indagou-se ja sabendo que nem por um segundo havia adormecido. Mas ainda podia sentir o toque em sua mão, apesar de estar sozinha. Que estranhos fenômenos auditivos e táteis eram aqueles que a acometiam frequentemente?
Ainda ficou ali por alguns minutos, refletindo a respeito e, então, decidiu que era hora de se deitar e dormir.
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Salamandra
RomanceEssa é uma estória permeada de um realismo fantástico, onde tudo pode acontecer. Poderia ser a história de sua vida, ou quase.