A loja era um reduto de pessoas inteligentes e elegantes, que apreciavam antiguidade, boa música, um uísque ou um vinho de qualidade e um bom papo. Seus clientes iam ali por puro prazer, para encontrar amigos ou quando buscavam por tesouros de origem comprovada. Eram poucos os que frequentavam o ambiente sofisticado, pois seu proprietário, um homem culto e perspicaz, já de idade avançada, selecionava seus frequentadores; seu negócio era exclusivo para pessoas extraordinárias.
Mas quando Murilo bateu com o nó dos dedos na porta, ela foi aberta imediatamente.
- Caro amigo, que prazer revê-lo! – saudou o visitante com um largo sorriso nos rosto magro, cuja beleza estava na barba branca bem-acabada.
Abraçou-o fortemente, e depois o beijou na face, como a um irmão querido.
Murilo retribuiu o abraço e o beijo, feliz por se encontrar ali, no ambiente requintado de Theo, envolto na magia que ele construía à sua volta.
- O conheço há bastante tempo para saber que veio em busca de alguma coisa muito especial. – E tirando uma garrafa de uísque do armário, disse, apontando uma mesa: - Sente-se e beba uma dose dessa relíquia, e me diga o que procura.
A recepção carinhosa e o uísque eram cortesias da casa, e Murilo os desfrutou com grande prazer.
Theodoro era adepto da dúvida; a veracidade de certas afirmações eram desconhecidas ou incognoscíveis, porque a razão humana era incapaz de prover fundamentos racionais suficientes para justificar tanto a afirmação como a negação dos fenômenos espirituais. Ele era um agnóstico convicto, mas tolerante, pois defendia o direito de qualquer um manifestar suas ideias, ainda que opostas as dele. Para ele crença e o conhecimento eram dois extremos da alma humana, que viviam em eterno conflito, e para se livrar deste, decidira pela temperança; acreditava sem acreditar, e desconfiava com dúvidas.
Era um homem benevolente com as imperfeições do ser humano, pois de há muito desistira de encontrar a justa medida de si mesmo; ninguém jamais teria essa exatidão! E agora, anos mais velho, percebia o tempo que perdera divagando sobre questões que jamais poderia comprovar, não enquanto fosse de carne e osso.
Mas era um homem bom, sem ser tolo. E era, acima de tudo, honesto consigo mesmo e com todos. A experiência lhe mostrou que muitos praticavam o bem por conveniência, sabendo que as boas ações conquistavam a simpatia e eram compensadoras; praticavam o bem na esperança de retribuição. Mas abominava esse tipo de transação, pois essas pessoas vendiam favores para comprar gratidão. Na verdade, eram negociantes sem escrúpulos, e ele jamais compactuaria com qualquer fraude. Sua análise dos outros não era baseada em dogmas, mas numa observação criteriosa de seus atos e consequências, porque a vida era prática e não um romance; enganou aqui, será enganado acolá.
- Theo, onde está a "sereia"? – perguntou, olhando a sua volta.
Encarou Murilo, consternado; fazia anos que vendera o tronco de arvore encontrado no fundo do mar que se assemelhava aquele mito.
- Caro, quantos anos fazem que nos apaixonamos por aquele tronco de árvore? – perguntou Theo, tentando reavivar a memória do amigo. – Eu vendi a "sereia" há muitos anos – e fez um gesto de impotência com as mãos.
- Vã esperança a minha... – sussurrou, Murilo, parecendo conformar-se, para em seguida, perguntar:
- Quem a comprou?
Theo o serviu de outra dose de uísque, antes de responder, perguntando:
- A paixão virou amor?
- Sempre foi amor, mas levei muito tempo para entender isso...
Theo balançou a cabeça, desolado; o canto da "sereia" o havia encantado!
- Se tem o modelo, para que o rascunho?
Murilo riu alto, apreciando a companhia do amigo. Lembrou-se das viagens que fizeram juntos, e das descobertas e mulheres que compartilharam. Foram tempos de muito trabalho e muito prazer. Theodoro era mais velho, parecia mais tranquilo e ajuizado, mas só parecia, porque seu fogo, camuflado sob cinzas, era reavivado com um simples sopro. E quando era acordado daquele torpor confortável virava um braseiro a incendiar o mundo a sua volta. Então era capaz de proezas inesperadas como beber uma garrafa de tequila, ou correr uma maratona, ou satisfazer muitas mulheres ao mesmo tempo e numa só noite. E lhe dizia, bêbado ou sóbrio que a vida era uma ilusão, principalmente o amor.
Por muitos anos Murilo concordara com ele, até que conhecera Salamandra. Então, sentiu a ilusão se dissipar e experimentou o que poderia ser gostar muito de alguém. E ao contar para o amigo suas novas impressões, o ouviu dizer: mito, criação da nossa cabeça imaginativa.
Mas ele também ficou impressionado quando a conheceu, mas de forma negativa; não era uma boa influência para um "bon vivant" como Murilo. E incontáveis vezes lhe afirmara que Jalou era a mulher certa para ele, previsível e pratica.
Murilo fugiu das lembranças e perguntou:
- Você nunca se apaixonou, Theo? – e viu uma sombra apagar momentaneamente o brilho dos olhos daquele homem experiente.
- Homens como nós, Murilo, morrerão sem amor. – E levantando-se, pegou um copo e serviu-se de uísque.
- Mas você teve ou não uma mulher especial em sua vida? - tornou a perguntar Murilo.
- Caro, não mexa comigo, estou calmo, tranquilo. Vivo em paz. Se quer conversar, fale de você.
Murilo ia comentar com ele sobre suas intenções em relação a Salamandra, quando seu telefone tocou. Viu Theo se afastar para deixá-lo a vontade. Ao desligar, procurou pelo amigo, e o viu se aproximar trazendo a estatueta de um dragão dourado, que segurava uma bola.
- Essa não vendi, talvez porque estivesse esperando pelo momento certo de fazê-lo. – Sorriu, acariciando a barba, e concluiu:
- Ela deve ser sua por algum direito natural.
Murilo segurou o pequeno objeto com grande emoção. Lembrou-se do dia distante da exploração que fizera com Salamandra ao continente de Mú. Haviam incontáveis relíquias no fundo do mar, certamente intocáveis, mas quando a viu acariciar com adoração uma estatueta em especial, pensou que em algum lugar daquele secular país haveria de ter uma réplica que poderia adquirir para dar-lhe de presente; talvez conquistasse sua aquiescência com aquele presente significativo.
Estava cego de desejo por aquela mulher orgulhosa, indiferente e esquisita, porque ela era muito esquisita, e isso o estava enlouquecendo. E depois de uma longa busca conheceu um famoso colecionador japonês que possuía uma réplica perfeita do dragão. Não hesitou e pagou a vultuosa soma e levou consigo o valioso presente. Mas nunca pudera entrega-lo porque desaparecera.
- Como isso veio parar aqui? – perguntou Murilo, perplexo.
- Jalou...
Murilo ia fazer um comentário, quando viu Jalou entrar e se dirigir para eles.
- Detesto interromper a conversar entre bons amigos, mas estou a trabalho. – e quando Theo se levantou, aproveitou para sentar-se.
- Quer um copo?
- Obrigada, Theo, mas não bebo em serviço. – Esperou que ele se afastasse e se virou para Murilo:
- Estive até agora com Miloch, e a obra está concluída. E, então, quando daremos a festa?
Ela era assim, sempre fora, um trator que esmagava qualquer coisa a sua frente para prosseguir na empreitada. E sua maior tarefa era a de se tornar indispensável para ele, e era.
- Não me ocupe com esses detalhes, Jalou. Tenho coisas mais importantes para pensar.
Só então Jalou viu a estatueta sobre a mesa e sorriu, amargurada. Soube, sem sombra de dúvida, que assunto importante consumia os pensamentos dele. Sentiu raiva, depois ciúmes, para em seguida morrer de inveja dela, daquela mulher misteriosa. E apesar de reconhecer a escultura, fingiu nunca tê-la vista.
- Comprou? – perguntou, erguendo a peça de encontro a luz.
Pareceu-lhe que ele ia falar alguma coisa, mas desistiu a meio caminho disto. E o ouviu dizer:
- Acabei de comprar.
Colocando o dragãozinho sobre a mesa, tirou da bolsa uma lista de nomes que mostrou para ele:
- Quer excluir ou incluir alguém? – viu Murilo examinar rapidamente a lista e concordar com ela.
– Não quer convidar ninguém em especial?
Ele até tinha cogitado em convidar Salamandra, mas sabia que onde uma estava a outra não deveria estar: as duas mulheres juntas era uma combinação explosiva que poderia jogar tudo pelos ares. E ele precisava de Jalou para pôr ordem em sua vida e, principalmente, para cuidar de seu dinheiro, mas precisava ainda mais de Salamandra para mante-lo vivo.
- Não, ninguém em especial. – afirmou, para evitar a catástrofe.
Jalou sorriu apaziguada, e se virando para onde Theo estava, pediu:
- Theo, me traga um copo, agora já posso beber.
Quando Theo se aproximou, pediu:
- Embrulhe a estatueta que vamos levá-la. E se prepare para a festa, você é um convidado muito especial.
Dias depois os convites foram enviados.
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Salamandra
RomanceEssa é uma estória permeada de um realismo fantástico, onde tudo pode acontecer. Poderia ser a história de sua vida, ou quase.