Capítulo 114 ULTIMO CAPÍTULO

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       Seu corpo despencava velozmente para o centro da Terra. Labaredas de fogo iluminavam sua descida vertiginosa, e o caldeirão efervescente que a tragava soltava vapores de enxofre. Gases quentes subiam rugindo, empurrando-a para baixo, para a combustão vital, o Sol dos Homens. E quanto mais fundo mergulhava, mais nitidamente podia ouvir o nome Maiva ser chamado.
       Viu o cordão umbilical brilhante que se desenrolando continuadamente a puxava para baixo, ao encontro do fogaréu, até que se chocou contra algo e sua queda terminou. Abriu os olhos e tornou a fecha-los quando um feixe de luz os cegou.
       - Ela despertou! - ouviu uma voz masculina sussurrar.
        Entreabriu os olhos, e viu vultos brancos debruçados sobre ela, examinando-a, ao mesmo tempo que percebia uma perturbação auditiva causada por um ruído continuo e seco como as batidas de seu coração. Sentiu uma pressão tátil uniforme e desconfortável no braço, enquanto ouvia o nome Maiva ser repetido mais uma vez, só que agora muito próximo dela; não era mais um chamado distante, como tantas vezes ouvira. Ameaçou falar, mas sua língua engrolada a impediu e a garganta seca arranhou quando engoliu em seco. Passou a língua nos lábios e eles eram como folhas de outono, ressecados e quebradiços.
- Tragam água. - Ouviu a voz pedir e em seguida sentiu um frescor revigorante lavar suas entranhas.
Aos poucos aquela secura foi passando e sua consciência, voltando. A ultima coisa da qual se lembrava era que tinha caído numa fenda quando já ia saindo da Rocha da Porta do Céu. E, de repente, foi tomada por uma duvidosa lucidez: é claro, só podia estar num hospital! Onde mais estaria?
- Pode deixa-lo entrar. - Ouviu novamente aquela voz e se pôs alerta.
Quem entraria pela porta: Miloch,
Murilo, padre Renzo? Quando ouviu o ruído da maçaneta, abriu mais os olhos e exclamou, aliviada:
- Miloch!
- Maiva, meu amor...
- Maiva? Quem é Maiva? Eu sou Salamandra!
        Viu o sorriso desaparecer do rosto bonito e uma expressão desconcertada tomar conta dele ao virar-se para o médico, que acenou que estava tudo bem.
O que estava acontecendo ali? Por que Miloch a tratava como se fosse outra pessoa?
        - Miloch, preciso falar com o padre Renzo, por favor.
- Com quem?
- Miloch, pare com essa brincadeira, preciso falar com o padre Renzo, é de suma importância que ele conheça o conteúdo dos pergaminhos. Ele precisa saber que libertei os mil braços de Deus antes de cair na fenda.
Atônito, tornou a olhar para o médico, que com um sinal da mão  confirmou que estava tudo bem e que continuasse. Então, com uma paciência que beirava a piedade, ele disse que Renzo não estava ali, mas que podia confiar nele para fazer chegar ao padre as importantes revelações.
Pressentiu uma grande falsidade na promessa dele e decidiu que não perderia seu precioso tempo revelando mais nada! Aquele espirito encostado em Miloch não debocharia dela, nem a usaria para tomar conhecimento do que estava por acontecer. O Mal tinha sua expertise, mas ela o conhecia muito bem.
- Onde está Murilo? Quero falar com ele.
E foi dominada pelo estupor quando ouviu a voz de comando, dizer:
- Não se preocupe, é normal que uma pessoa ao acordar do coma viva por um tempo num universo à parte, resvalando entre alucinações e momentos de lucidez. Tenha paciência que logo tudo se normalizará. Vou deixa-los sozinhos, converse com ela, conte-lhe dos gêmeos, isso a ajudará a se recuperar mais rapidamente.
         Então, aqueles chamados que só ela podia ouvir era a equipe médica tentando acorda-la? E os toques e as desagradáveis sensações corporais eram os tratamentos médicos a que estava sendo submetida enquanto profundamente desacordada?
Assim que todos se retiraram, sentiu mãos quentes acariciarem seu rosto, e a sensação paralisante foi-se dissipando com aquele carinho.
- Maiva, meu amor... Estou aqui com você como sempre estive, como sempre estarei, não se preocupe com nada. O importante é que você e os gêmeos estão bem. Sofri tanto quando você rolou escada abaixo!
A narrativa dele e suas lembranças do que lhe acontecera não se confirmavam. Estaria de fato delirando conforme dissera o médico, ou novamente mergulhara numa viagem astral para alguma dimensão paralela? Precisava de uma prova, de uma confirmação de quem era, porquê aquela realidade mais parecia um mergulho num pesadelo do que o despertar dele. 
          - Você disse que estou grávida... de gêmeos?
          Viu o sorriso de triunfo no rosto bonito que tanta amava:
          - Está, meu amor.
          Lembrou-se do bispo, seriam seus os filhos que carregava? Fechou os olhos, sentindo-se profundamente cansada daquele jogo insano que era sua vida.
          Entreabriu os olhos e viu o rosto masculino observando-a com ternura. Quem era ele que parecia não saber quem ela era? E ela, quem era, de fato? Era Salamandra ou seria aquela tal de Maiva?
         - Miloch, pára com essa encenação ridícula, você sabe muito bem quem eu sou.
         - É claro que eu sei... você é o meu amor.
Alguém avisou que era preciso deixa-la descansar.
- Eu volto amanhã. - Disse, aproximando-se da cama para dar-lhe um beijo de despedida.
E foi quando ela viu seu peito esquerdo pela camisa entreaberta e a marca em torno do mamilo. Lá estava a dentada que lhe dera tempos atrás cicatrizada e inconfundível. Agora tinha a resposta que tanto buscara, o tatuara com seus dentes para reconhece-lo pela eternidade, ainda que ele não soubesse quem era. Não importava o nome que tivesse, nem a sua aparência, sempre reconheceria nele a marca daquele amor sem fim.
- Essa marca no seu peito, como a conseguiu?
- Nasci com ela...
Fechou os olhos e afundou na cama, exausta. E novamente duvidou de si mesma. Realidade e ficção tornaram a se misturar em sua mente. Então tudo não passara de uma ilusão! O padre Renzo, bispo Adriano, o andarilho, Jalou, Murilo, Susan, Ruy, Margo, Theo, Miloch, nem mesmo Salamandra existiram de fato? E eram pessoas tão valentes e verdadeiras, tão bonitas! E tudo que vivera não passara de delírios provocados por sua consciência apagada, em coma?
Suplicante, pediu a Deus para voltar àquele mundo de fantasia, onde reencontraria a todos e onde voltaria a ser imortal. E exausta, mergulhou num sono profundo.
Naquela noite acordou sentindo um calor abrasador, e suando profusamente, virou-se para o lado de onde ele vinha e viu um lindo dragão dourado...

              FIM

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⏰ Última atualização: Sep 24 ⏰

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