Capítulo 21

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Deixou o gabinete e ganhou a rua sentindo-se revigorada. O ambiente de trabalho do bispo era muito austero, talvez até opressor. E ela tinha o coração leve, apesar de ser quem era.
Respirou fundo o ar do fim de tarde. Perdera mais um dia ensolarado, de céu azul, trancada na penumbra refrescante da sala de Adriano, falando de coisas inimagináveis para a maioria das pessoas. Ah, como sentia pena das pessoas que não sabiam daquilo que ela sabia! E mais ainda daquelas que, sabendo, não acreditavam nelas, como o bispo Adriano. Se nem Deus tirava a venda daqueles que acreditavam Nele, quem era ela para varrer a cegueira do mundo?
Lembrou do celular desligado na bolsa. Aquela era uma das regras estabelecidas entre ela e Adriano: ele pedia para não ser incomodado e ela desligava o celular. Havia um pacto de Império entre eles, que respeitavam como se lei fosse. Eram regras que seguiam para o bom convívio, e, sobretudo, para sobreviverem à ele. Outra dessas regras, firmada há muitos anos atrás entre Adriano, Renzo e ela era a de que ninguém além deles conheceria a verdade até que a verdade não colocasse em risco a vida deles.
Tirou o celular da bolsa; não haviam ligações e nem mensagens de Miloch. E soube que ele estava com muita raiva. Podia sentir o clima estranho que estava sendo criado entre eles, mas nada podia fazer para evitá-lo, ainda não. Talvez só Renzo pudesse lhe dizer como desfazer aquele nó.      
         Lembrou-se do perfume na camisa dele e concluiu que alguns males eram passageiros e outros se tornavam cicatrizes indeléveis; esperava que o tempo apaziguasse seu coração.
E para afastar a nostalgia que a invadia naquele anoitecer, decidiu beber um aperitivo.
Escolheu uma mesa mais reservada e sentou-se. Olhou a sua volta, desejando ser uma pessoa comum, como qualquer uma daquelas que vivia sem pensar, apenas replicando um modelo. Porque a maioria das pessoas não percebiam que nunca tomavam decisões em suas vidas. Quase todos eram levados como um rebanho, de um lado para outro, e como gado seguiam o comando sem sequer cogitar se ele era bom ou não, se os levaria para um caminho seguro ou para o precipício. Apenas seguiam a ordem, perdidas no caminho, acreditando que sabiam onde pisavam. Mas ela sabia que eles não sabiam, e que só descobririam isso quando despencassem no abismo.
Sentiu uma profunda compaixão pelos seres humanos que destruíam tudo e todos, sobretudo, a si mesmos. Ninguém, como ela, sabia como era doloroso purgar esses erros em vida e, sobretudo, depois dela.
- Achava que me lembrava do quanto você é bonita!
Aquela voz baixa, soprada tão próxima dela, lhe causou um estremecimento de saudade. E já sabia quem era. Se virou e sorriu. Ali, a sua frente estava ele, Murilo.
- Quer continuar sozinha? Ou posso me sentar?
Ela sorriu ainda mais, reconhecendo o quanto aquele homem sabia dela. E seus olhos se encontraram num mergulho de profundezas abissais. Ele se sentou sem dizer nada, e sem desviar os olhos. E sentiu que podia ficar ali com ela, agora, para sempre.
Os copos se tocaram gentilmente, celebrando aquele reencontro inesperado. Nada disseram, nem precisava. O coração dela batia tão forte no peito que julgou que ele poderia ouvi-lo. Estar ali com ele, novamente tão próximos, a mergulhava em recordações tão vívidas que nenhuma passagem de tempo poderia apagar! E concluiu que coisas vividas da forma como foram vividas por eles jamais poderiam ser esquecidas!
Ele a observava reconhecendo nela a paixão que o acorrentara anos atrás, e da qual nunca conseguira se libertar, e nem nunca quisera, mas só agora sabia disso. Aquela mulher e seus olhos verdes o escravizaram. E só depois de muitos olhos de cores diversas percebeu que era ela a única que queria para si. E nada motivava mais um homem que a mulher certa.
Estendeu devagar suas mãos fortes sobre a mesa e tocou a ponta de seus dedos. Viu ela retirar suavemente a mão. Controlou sua vontade de tocá-la novamente. Não queria assustá-la, porque a queria para sempre.
E ficaram assim em silêncio, bebendo, se olhando e relembrando em silêncio o passado. A palavra, qualquer que fosse, era desnecessária. Desfrutavam daquela emoção que só duas almas em sintonia podiam sentir.
Ela lembrava do dia em que o conhecera. Alguém da expedição lhe avisara que o pesquisador mantenedor da fundação ia se atrasar. Aquilo lhe soou como uma ofensa, porque ela não tinha tempo a perder! E mais ofendida se sentiu quando ele chegou, a cumprimentou e nem se desculpou. Afinal, quem ele julgava ser?
Avançaram mar adentro, navegando por longos quilômetros até que chegaram onde deviam mergulhar. Durante todo o tempo ele conversara com todos, rindo muito e alto, menos com ela e para ela. Sequer lhe dirigira uma palavra! Era como se ela não estivesse ali, a espera dele para cumprir seu dever naquela empreitada! Era uma provocação, e sentia um grande desconforto. Não gostava de pessoas que afrontavam seu ser.
Contrariada, vestiu a roupa de mergulho e já estava preste a se lançar no mar quando uma mão forte a impediu:
- O mergulho requer um coração sereno.
E, para ela, tudo começou ali, porque uma pessoa que conseguia enxerga-la além da aparência era alguém que valia a pena ter na sua vida.
Ele também lembrava daquele dia, da mulher maravilhosa que gostaria de esmagá-lo com sua raiva, e do esforço que fizera para não se desculpar com ela. A ira que ela transpirava era tão atraente que por nada neste mundo a abrandaria. E ria mais e mais só para vê-la reagir à sua aparente indiferença. Na verdade, não tirara os olhos dela um minuto sequer! Havia algo nela que de tão inexplicável despertou sua alma de pesquisador e decidiu que se dedicaria de corpo e alma àquele mistério. Depois entendeu melhor a si mesmo e concluiu que fora sua alma de conquistador que o cegara naquele dia.
Mas agora, naquele reencontro por ele mentalmente programado, descobriu que foi ele que acabou por ser conquistado, definitivamente conquistado.
Também para ela não havia como fugir ao apelo do passado, e havia aquele maldito perfume.

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